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Charlie Chaplin, O Gênio da Liberdade

O mundo gira e Charles Chaplin verseja

Por João Lanari Bo

Durante o Festival É Tudo Verdade 2021

Charlie Chaplin, O Gênio da Liberdade

Fazer um documentário sobre a vida e a obra de Charles Chaplin é uma daquelas pedreiras que desafia a lógica dialética: fundir o conjunto da obra e suas partes em um todo inevitavelmente resultará em uma incomensurabilidade, com profundidade e extensão desproporcionais aos seus próprios limites. O documentário “Charlie Chaplin, o gênio da liberdade”, de François Aymé e Yves Jeuland, traz filmagens inéditas, fotografias e documentos cedidos pela família; e levou três anos de pesquisa, revisão e montagem para ficar pronto. A pergunta que não quer calar: será possível algo de novo nesse oceano infinito que é a obra de Carlitos? Os realizadores franceses não titubearam, e foram à luta: ao final dos 145 minutos a sensação é a de um estupor prazeroso, uma combinação contraditória, mas aceitável. No filme, não há nada de novo no front chapliniano: a revisitação das imagens, dos gestos, dos espaços subvertidos, da poesia, da sátira, tudo, enfim, que caracteriza a incomensurabilidade desse universo está lá, para gáudio dos admiradores. O plus que funciona a contento é a construção da linha do tempo, privilegiando o eixo da “liberdade” inscrito no espírito chapliniano, um ativo de valor nessa era tão confusa e pantanosa que atravessamos, sobretudo em solo brasileiro.

Ou seja, o doc, exibido no Festival É Tudo Verdade 2021, cumpre sua função, de estimular novas incursões na obra chapliniana, cada vez mais disponíveis nas plataformas gratuitas da internet. E é isto que interessa, afinal: encarar o anárquico Chaplin dos anos iniciais da Keystone (do genial Mack Sennet) ao politizado diretor de “O Grande Ditador”, passando pelas obras-primas dos anos 20 e 30, adquire uma nova allure, para usar a expressão francesa que denota sedução. E não é pouca coisa: Godard, referindo-se a Sennet, dizia: “O cinema, que copia a vida, que se tornou a vida, que representa a vida, o cinema começou assim: não se fazia roteiro; não se escrevia. Eles saíam e filmavam”. Charles Chaplin, que penou durante a infância nos abrigos e lares da Londres dos romances de Charles Dickens, com pai e mãe talentosos artistas, ele alcóolatra e ela sifilítica, não vacilou: logo integrou-se nessa volúpia criativa, agregando sua iluminada sacação do personagem “vagabundo” – um excluído social, com trejeitos e figurinos desproporcionais inspirados no bas fond londrino – e fazendo 1 a 2 filmes por semana. Foi a atualização simbólica mais rápida e efetiva da história do cinema: em pouco tempo suas estrepolias geniais colaram na audiência, na aurora do capitalismo global da fase moderna do qual o invento cinematográfico é um dos vetores destacados.

Charlie Chaplin, o gênio da liberdade” detalha com afinco a evolução patrimonial de Chaplin: em dois anos passou de 150 dólares por semana para 670 mil anuais, e logo 1 milhão, uma fortuna absurda. E como isso acontecia, nesse trem alucinado de improvisação? Cinema e acumulação de capital: é aí que Godard localiza o nascimento do roteiro como peça fundamental na engrenagem industrial da atividade cinematográfica – “Mack Sennet saía de carro com um amigo vestido de soldado, uma garota fantasiada de banhista e um jovem que fazia o papel do apaixonado. O contador ficava louco, porque ele não sabia para onde ia o dinheiro. Então, o contador escreveu: uma banhista, 100 francos; um soldado, 50 francos; um apaixonado, 3 dólares. O roteiro vem da contabilidade. Ele foi o primeiro vestígio de como se gastava o dinheiro”. Não deu outra: logo Chaplin aprendeu com a prática e vislumbrou um salto em suas produções; mais tempo de preparação, audições, repetições, e até mesmo autonomia como produtor. Vieram os longas, com mais tempo entre as filmagens. Construiu seu estúdio e ligou-se à “United Artists”, com o amigo Douglas Fairbanks, Mary Pickford e o poderoso D.W. Griffith. Entram em cena os casamentos, divórcios e escândalos, pensões milionárias; mas tudo isso parece fundir-se na veia do artista. A adesão popular é (também) incomensurável – na sua autobiografia, a descrição de uma viagem de trem da Califórnia à Nova York é absolutamente inacreditável, multidões a cada estação, cinema e comunicação de massa. Os intelectuais, da Escola de Frankfurt (Benjamin, Adorno, Kracauer) ao Chaplin Club carioca (Octávio de Faria e Vinícius de Moraes), passando por Mário de Andrade e Paulo Emílio Salles Gomes, cedem ao encanto: só resta a adesão, é o adágio chapliniano.

O mundo, entretanto, girava e flertava com ruína e morte: “Charlie Chaplin, o gênio da liberdade” mergulha nas circunstâncias históricas que geraram “Tempos Modernos” e “O Grande Ditador”; e na ignominiosa perseguição política do FBI, que o levou ao desterro. O mundo gira e Charles Chaplin verseja: de uma ideia do amigo Orson Welles faz “Monsieur Verdoux”, exercício sado-humorístico; e com Buster Keaton, uma contracena inesquecível em “Luzes da Ribalta”. Em 1972 volta a Los Angeles – com visto de apenas 10 dias – para receber o Oscar honorário. Testemunhas oculares indicam que foi ovacionado de pé por (pelo menos) 12 minutos. Outros negam, mas pouco importa: com Chaplin, o território é incomensurável.

3 Nota do Crítico 5 1

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