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Cavalo

Personalização da Ancestralidade

Por Vitor Velloso

Crítico convidado pela Mostra de Tiradentes 2020

Cavalo

Quando se fala de obras apresentadas fora da competição na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, costuma-se vislumbrar pequenas grandes pérolas surgirem no cinema brasileiro. “Cavalo” de Rafhael Barbosa e Werner Salles, é um destes casos.

Entre os sete corpos, a ancestralidade evocada com vertigem em gira de pele e fé, assume sua face frente à sociedade que busca a opressão da expressão. A liberdade se dá na dança ou no ato basilar de permitir que os pais e as mães nos tomem em conferência terrena. Consciente de sua política de diretriz frontal quanto a contemporaneidade que cerca o Brasil em terror à História e que sufoca os ancestrais, a obra circunda os contornos que marcaram a trajetória desse país e do continente que os abrigaram.

“Cavalo” possui a fluidez de transitar entre o documentário e o ensaio ficcional com uma organicidade louvável, pois reconhece em sua estrutura a necessidade de ampliar os horizontes da realidade para que haja uma compreensão mais dinâmica e concreta da temática que trabalha. Assim, o projeto funciona com uma dubiedade que adiciona à experiência uma vertente nobre do discurso que se projeta em tela, já que levanta a possibilidade de assumir essa postura firme que dá título ao longa-metragem. Esse ato de recepção de uma proposição que se eleva em corpo e alma é identificada na obra como um todo, desde o tempo que se estende em permissão de quadro à estética que domina toda a construção do projeto.

Não à toa, essa questão da plasticidade está presente o tempo inteiro, onde decide espelhar uma performance controlada, para que haja essa multiplicidade das faces que são filmadas. Ao mesmo tempo consegue evitar a burocratização da imagem ao filmar com respeito um dos dançarinos que chora compulsivamente em colo que o acolhe. Essa dicotomia criada pelos diferentes momentos gera esse movimento constante da produção. Dicotomia esta presente não apenas em sua temática, mas também nos objetos de seu material central. Essa provocação constante que necessita enfrentar a inércia, que recusa o estoico, que se apropria do embaraço no intuito de desconcertar, desarticular, porém construir.

Dessa maneira, a música entra em cena como uma guia espiritual para essas imagens, refletindo aquilo que se grita ou se bate em peito. A cultura é uma verve que não se perde, mas que se funde ao passado em tônica ao futuro. O contemporâneo acaba vencendo o fim da projeção ao revelar Baco Exu Do Blues em seus minutos finais. Uma escolha no mínimo particular, não por seu conteúdo ou ato de representação, mas a distância que se toma desta iniciativa histórica que vinha sendo abordada.

Alguns entendimentos imagéticos que buscam revelar determinadas metáforas acabam tornando-se expositivos de didatismo excessivo. Isso ocorre porque a obra jamais busca esse referencial, pelo contrário, a dialética é uma notória ferramenta do material. Esses dispositivos que acabam facilitando determinadas iniciativas brevemente incisivas contra essa padronagem social, acabam soando menos intensas e pouco reativas. Não que busque uma reconciliação, mas um apaziguamento que é compreensível em discurso, mas que não se projeta na estrutura de “Cavalo”.

Essa distorção de uma linearidade de pensamento acaba enfraquecendo algumas intenções, mas fortalece esse tom de frenesi da concretude do âmbito antropológico, para com o espectador. O ritmo, herdando da musicalidade uma potência de destaques temporais, torna todo o processo pouco dinâmico e pode vir a cansar parte do público, uma vez que toma para si essa extensão máxima de quadro que se posta no ecrã.

É quase uma necessidade de ser incisivo com um determinismo e academicismo que circula o cinema contemporâneo. Ainda que acabe flertando com algumas concepções do mesmo, o longa-metragem demonstra ser um manifesto que se traveste em audiovisual, buscando uma compreensão daquilo que se projeta como uma questão ancestral e lança mão de seccionar as temáticas que toca. Pelo contrário, sempre busca uma conjuntura que as una. Ao focar em personagens específicos, não abre espaço para uma individualização dessa estrutura, apenas demonstra o pulso pessoal que há em cada uma dessas partes.

Cavalo” não se destaca na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes por não ter entrado na competição. Todavia, mostra que estamos na hora de repensar a organização de determinadas exibições durante tal festival.


Assista ao filme de 10 a 14 de março na Mostra de Cinema de Gostoso 2021, clicando no link: https://innsaei.tv/#/

4 Nota do Crítico 5 1

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