Cartografia das Ondas
Resquícios de expressão
Por Vitor Velloso
Assistido presencialmente na Mostra de Tiradentes 2025
É particularmente curioso quando um filme expõe sua estrutura para o público, questionando em voz alta para o espectador os caminhos a serem seguidos, quase expondo os conflitos da construção do roteiro e dos diferentes caminhos a serem seguidos na narrativa. “Cartografia das Ondas”, de Heloísa Machado, possui essa proposição de transparecer para o espectador o funcionamento e questionamentos que se apresentam ao longo da elaboração de um roteiro de forma tão natural e orgânica que permite uma troca com o espectador, de forma quase interativa da multiplicidade de possibilidades de percursos e ações dos seus personagens.
Assim, o projeto se debruça veementemente nessa arte de guiar e contar a história de seus personagens, de forma progressiva seus personagens vão ganhando vida, mas quase como artifícios da própria obra. Esta estrutura gera um efeito dúbio no desenvolvimento dramático, por um lado o espectador passa a ter acesso às camadas cada vez mais densas e profundas dos personagens, por outro, há quase uma despersonalização dos mesmos, pois eles passam a ser um dispositivo que movimenta não apenas a relação dramática, como a própria proposição formal de “Cartografia das Ondas”. O interessante aqui é assumir o recurso como uma consciência de exposição das formas de linguagem e desenvolvimentos possíveis, não como fragilidade. Por outro lado, a direção guia esse trânsito metalinguístico e auto referencial de forma pouco eficaz em determinados momentos, por mais que o diálogo entre os roteiristas, Heloísa e Gledson Mercês, seja frequente e admirável, é possível notar uma predileção pela manutenção de uma estrutura apresentada desde os primeiros minutos, com algumas apresentações breves de conceitos internos ao próprio universo e uma certa falta de cuidado no encerramento de determinadas histórias.
Assim, não ocorrem exatamente apagamentos ao longo da estrutura, mas sim o esquecimento de determinados ciclos e contradições presentes, apenas o conceito ou a ação permanece. Não por acaso, a chave central da gravidez e da ilha das prostitutas permanece em suspenso durante parte da projeção, ou acabam sendo retomadas em pontos futuros, parciais e inconclusivos. A disritmia pode ser sentida na montagem, assinada por Ricardo Pretti, Acácia Lima, Rafael Romão e Heloisa Machado, que é desajustada em determinadas sequências e categoriza os dispositivos como único objeto de interesse na construção formal. O inusitado é que essa estrutura que convida o público a participar do filme ainda que de forma passiva, possui sua maior força nas sutilezas com que vemos o desenvolvimento dos personagens, os aprendizados, as dificuldades e suas intimidades, ou seja, é o caminho oposto do que é apresentado como seu grande trunfo de linguagem.
Não por acaso, “Cartografia das Ondas” é tão irregular em suas intenções e forma, pois se utiliza do conceito de exposição estrutural de forma inventiva, mas permanece em um desejo de articular isso até as últimas consequências, sem permitir que as belezas sutis se desenvolvam com a mesma naturalidade que sua exposição formal. O resultado disso é um filme que encontra tantos possíveis caminhos e tantas histórias paralelas, que joga para segundo plano o aprofundamento de suas relações, sem permitir que elas sejam capazes de emocionar o público com a mesma organicidade de sua proposta.
Apesar dessas inconsistências, “Cartografia das Ondas” encontra momentos de grande potência quando se permite respirar entre suas camadas metalinguísticas e sua constante autorreflexão. Há cenas em que os personagens parecem escapar brevemente do controle da estrutura proposta, entregando interações e silêncios que revelam uma profundidade emocional mais palpável do que a própria tese do filme sugere. Esses instantes, ainda que dispersos, são responsáveis por gerar uma conexão genuína com o público, mostrando que, para além da experimentação narrativa, há um interesse real em explorar as fragilidades e os desejos humanos que movem a história.
No fim, “Cartografia das Ondas” é um experimento que fascina e frustra na mesma medida, um filme que se recusa a oferecer respostas fáceis, mas que também hesita em se entregar à vulnerabilidade que faz do cinema uma experiência verdadeiramente transformadora. Ainda que esses excessos de preciosismo na linguagem prejudicam o filme. Dessa forma, o filme acaba se tornando um exercício de linguagem que, mesmo tropeçando em sua própria rigidez conceitual, possui um frescor que o distingue dentro do cenário da Mostra Aurora nesta atual edição de Tiradentes.