Black Flies
Mais uma epidemia norteamericana
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2023
Não, não deve ser nem um pouco fácil escolher obras para a mostra competitiva a Palma de Ouro do Festival de Cannes. É muito filme, de muito lugar e com uma lista de número reduzido. Sim, deve haver também muita diplomacia e, lógico, algumas subjetivas predileções. Mas a impressão que temos é que parece que algumas escolhas vão além das próprias formalidades. Sim, também entendemos que gostar ou não de um filme é relativo e extremamente pessoal, como é o caso de “Black Flies”, que integra a competição desta edição 2023. O longa-metragem, realizado pelo francês Jean-Stéphane Sauvaire, é o típico filme de ação, que tem como objetivo manipular emocionalmente os espectadores, alterando seus batimentos cardíacos em sequências de tensão, com câmera em super close, decisões no limite extremo entre vida e morte. Sim, a força de “Black Flies” está em sua aceleração, no speed time de sua narrativa. Até aí, tudo bem! Só que o filme ainda quer todos os gatilhos comuns e mais padronizados da estrutura hollywoodiana de se fazer cinema.
Não podemos negar que “Black Flies” é um filme visualmente estético. Suas imagens atravessam reflexos em vidros, complementada por uma fotografia neon de uma cidade grande à noite. Tudo para traduzir o universo, quase metafísico, dos paramédicos que vivem sob pressão em estágios crônicos de adrenalina, sempre na urgência dos salvamentos e das perdas. Sim, o filme causa a tensão, mas até isso é trabalhado pelo diretor de forma didática, em que tudo é explicado nos mínimos detalhes. Sim, o público já viu esse filme. Um típico representante de gênero em que uma personagem se “vicia” nessa epinefrina como uma motivação de continuar vivendo a própria existência. Sem força para desistir, a solução é se agarrar nessas “aventuras” diárias.
“Black Flies” mostra uma Nova York sem glamour, querendo até ser, desculpas aos cinéfilos, um moderno Martin Scorsese, em que neste a violência está nas situações. Não, também não é fácil transpor as telas um roteiro mais naturalista, especialmente se a atmosfera for a de mundo cão. Há um ditado popular que diz que se um diretor precisa explicar seu filme é sinal de seu filme não é bom. É, pois é, Sauvaire não economiza clichês em sua narrativa, um delas, por exemplo, é a “jaqueta com asas de anjo” e/ou o artifício batido de suprimir o som em momento de perigo/sofrimento. E/ou a história se passar em Chinatown. E/ou os xingamentos a um policial. E/ou conferir abusos sexuais. E/ou o HIV. E/ou a rebelião. Sim, cansa assistir! É apelação demais. Então temos um morador de uma área pobre, um novato que recebe ajuda de um veterano, conflitos e redenções.
Cada vez o filme fica mais solto, mais vazio, não conseguindo conectar as emoções das personagens, em especial a do protagonista, com a própria historia. “Black Flies” parece desistir do próprio filme, deixando de lado o apuro técnico com as interpretações, que soa mais e mais caricatas. Outro tópico também importado do cinema norteamericano é o humor, que se desenvolve ora pelo mórbido, ora pelo alívio cômico, ora pelo agressivo e ora pela ofensa (sobre branco, contra chinês). E lógico, sua câmera lenta. Sim, cansa! E continua. Entra o dilema moral com a ex-mulher de seu parceiro. Mas a obviedade máxima toma conta total do filme quando adivinhamos o que a personagem principal (pelo ator Tye Sheridan, de “X-Men: Apocalypse”) fará a seguir. É a gota d’agua para indicá-lo ao Troféu Framboesa. Sim, pelo menos ganhará um prêmio. Não é Cannes, mas já é alguma coisa. E tem Sean Penn (que substituir Mel Gibson) no elenco, talvez isso possa ajudar o filme. Ou não. E Mike Tyson. “Você acredita no céu? Não sei! Eu acredito no inferno”.
É, pois é, “Black Flies”, baseado no livro homônimo de Shannon Burke, a “poeta do trauma” (que escreveu em 2008 durante a epidemia do crack nos Estados Unidos), e que também tem o título de “Asphalt City”, gera o questionamento do porquê este filme está na competição oficial. Como disse, tudo é subjetivo e relativo. No passado, François Truffaut criou um manifesto para proteger o cinema francês das influências de Hollywood. Mas no final até ele sucumbiu aos encantos “sereianados”. É, parece mesmo que a França tem suas predileções e suas ideias-projeções do que é o novo cinema.