Bacurau
Intimidação, educação e revolta
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2019
Exibido no horário mais nobre da mostra competitiva do Festival de Cannes 2019 (em 4K “crocante” e volume 7.0), o novo filme de Kléber Mendonça Filho (“O Som ao Redor”, “Aquarius”), que divide direção com Juliano Dornelles, “Bacurau” (2019) gerou expectativa nos brasileiros. Seus filmes anteriores imergiam o publico em uma atmosfera de perigo inerente e uma pressão-suspense, causada pelos próprios indivíduos sociais, que não se cansam de reverberar a máxima filosófica do francês Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros”. Sim, muitos ficam incomodados com as diferenças idiossincráticas.
“Bacurau” é uma experiência. De tempo e espaço. Nós espectadores remetemos à fábula política-social do escritor português José Saramago, em seu “Ensaio Sobre a Lucidez”, e somos convidados a participar de uma rotina única de inocência passada (ainda que a presença do celular seja não só de diversão, mas principalmente de artifício tecnológico de sobrevivência nesta “terra sem lei” e ou pela trilha sonora que conserva uma atemporalidade existencial) de uma comunidade interiorana e fictícia chamada “Bacurau” no Oeste de Pernambuco, alguns dias depois.
O longa-metragem, um faroeste apocalíptico, importa a ideia de união, de comuna, de vizinhos próximos que ajudam uns aos outros, que lutam e protegem o lugar em que vivem, fazendo com que quem assiste tenha inferências a “História da Eternidade”, de Camilo Cavalcante. Outro ponto que precisamos abordar é que Kléber era crítico e cinéfilo inveterado antes de se tornar um integral realizador. E que mesmo sem perceber, planos, ângulos, narrativas e formas condutoras são trazidas com peso naturalista. Sim, a parte final é indiscutivelmente uma moderna homenagem a Glauber Rocha e seu “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”.
“Bacurau”, iniciado com imagens do Espaço Sideral (porque lá em cima todos o seres parecem iguais e calmos), que pelas palavras de Kléber disse que o melhor “protesto contra os acontecimentos atuais no Brasil é o próprio filme”, imprime um amadorismo caseiro proposital. É cinema urgente, direto e que permite improvisações, até porque a sensação despertada é mais importante que sua forma. É conceito crítico, metafórico e político sobre a padronização do poder (a lei do mais forte) e da necessidade de erradicar lugarejos em prol do progresso.
Contudo, seus moradores não se dão por vencidos e parecem ressoar as palavras de um dos episódios do seriado “Game of Thrones”: “O inimigo sempre vence, mas precisamos enfrentá-lo mesmo assim”. Cada um deles, dentro do que possui, busca a vitória e nunca fugir da guerra.
“Bacurau” também é o simbolismo de um peculiar pássaro “que só aparece à noite, porque é bravo”. Uma ave caprimulgiforme da família caprimulgidae, conhecido também como curiango, curiango-comum, ju-jau, carimbamba, amanhã-eu-vou (em Minas Gerais), ibijau, mede-léguas, acurana e a-ku-kú (nomes indígenas – Mato Grosso). O seu nome é onomatopaico e deriva de sua vocalização. Essa digressão caí como uma luva. Seus moradores, uma alusão aos indígenas, estão confortáveis e felizes onde moram, apesar dos descasos do prefeito do local que não resolve a questão da água. Assim como em “Aquarius”, aqui há também dois antagonismos: intimidação e revolta. De um lado, a falsa simpatia pressionada versus a necessidade de se revidar, em uma versão mais hardcore de Grace em “Dogville”.
Porém, com tantas camadas e tantos desdobramentos, o longa-metragem perde ritmo ao tentar abraçar o mundo e de ajudar gregos e troianos. Por exemplo, a parte brasileira desenvolve uma sutileza ingênua, motora, orgânica, física e intrínseca à moda de “Vidas Secas”. Já a americana apresenta-se destoada em relação ao contexto, soando muito mais artificial e comercialmente hollywoodiana por padronizar estereótipos, típicos de filmes de ação (como se quisesse uma frágil suavização do tema com óbvias e mais palatáveis, por exemplo, o politicamente incorreto do cigarro e ou o oportunismo gratuito do senhor nudista). Essa onda que vai e volta incomoda e modifica a própria narrativa em instantes vividos de um tempo suspenso e descontínuo.
Mas o contudo do porém retorna a outra percepção. As camadas sub-textuais (que com suas fusões de imagens; sem músicas entre as cenas; perspicácia espirituosa dos verdadeiros dirigentes de suas terras, igualzinho à história do livro citado acima; motoqueiros forasteiros, facções “Mad Max”), embaladas principalmente pela urgência do tema político, ganham infinitos contornos em um céu azul monitorado por um satélite. No final da sessão de gala, Kléber, fugindo à regra, solicita o microfone para dizer algumas palavras: “Cultura brasileira, muito obrigado a todos os brasileiros. Esse é um momento muito importante no nosso país. Esse é um filme sobre resistência e educação. E sobre ser brasileiro no mundo. Muito obrigado!”.
“Bacurau” foi rodado no Sertão do Seridó, divisa do Rio Grande do Norte com a Paraíba, exatamente um ano atrás. As locações foram encontradas depois de a equipe percorrer mais de dez mil quilômetros em Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. As filmagens duraram dois meses e três dias, com uma equipe de 150 pessoas. As cidades de Parelhas e Acari serviram de base para a produção.
Sobre o filme, Juliano Dornelles diz: “Bacurau é um projeto que vem sendo desenvolvido desde 2009, quando era só uma ideia, até ser filmado em 2018. Enquanto o roteiro se transformava, o país e nosso cotidiano também. Estrear em Cannes nesse ano de 2019 é dar um lugar de respeito ao Brasil, seu cinema e sua cultura.”
Para Kleber Mendonça Filho, “Esse é um trabalho de anos, feito com os colaboradores próximos de sempre e alguns outros novos. Creio que esse filme é o resultado da nossa relação com os filmes e as pessoas que amamos e que nos formaram, com Pernambuco, com o Brasil e com o mundo. E incrível poder voltar a exibir um filme no Palais em Cannes, três anos depois daquele momento sensacional com Aquarius!”.
Ele continua: “Gostaria de mandar abraço especial para os moradores de Parelhas, Acari e, principalmente, à comunidade de Barra, onde fizemos Bacurau. Os quatro meses de trabalho lá com preparação e filmagem confirmaram o que já sei há tantos anos: o trabalho com a cultura nos fortalece, nos legitima. Como foi importante ter podido compartilhar essa experiência de trabalho com tanta gente”.