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Assassino Por Acaso

A arte da multiplicidade do ser

Por Pedro Sales

Festival de Veneza 2023

Assassino Por Acaso

Em certo momento de “Assassino Por Acaso“, a definição freudiana das subpersonalidades é colocada em pauta, ou melhor, em um quadro negro. O conflito entre id e ego, o lado movido pelo prazer e o movido pela realidade, respectivamente, de certa forma toma a vida do protagonista Gary Johnson (Glen Powell), que, além de professor de psicologia, é um contratado da polícia de Nova Orleans para trabalhar sob disfarce. Para dar conta dessa dualidade, entra o terceiro ponto: o superego. Esta última subpersonalidade é responsável pelos valores morais e os pensamentos de autocontrole. Misturando comédia, psicologia, ação e romance, o diretor Richard Linklater, de “Boyhood” (2014), constrói uma obra extremamente cativante do início ao fim, com um timing cômico excelente e um controle tonal que consegue ir facilmente da tensão ao romance incandescente.

Gary, professor de Psicologia e Filosofia na Universidade de Nova Orleans, divide seu tempo entre as aulas e as operações policiais nas quais auxilia Jasper (Austin Amelio), policial que finge ser um assassino de aluguel para obter confissões daqueles que planejam assassinatos. Por uma reviravolta, Jasper é suspenso e cabe a Gary sair dos bastidores para ele mesmo assumir a persona do assassino de aluguel falso. A vocação do professor torna-se, então, evidente. É como “uma pesquisa de campo”, ele define enquanto monta o assassino ideal para cada “cliente”. Quando uma atraente Madison (Adria Arjona) tenta contratar o assassino para dar cabo do marido abusivo, o conflito entre id e ego para Gary cresce e ele cede ao prazer, em um jogo perigoso entre Gary e Ron, a persona escolhida para ser o assassino de aluguel.

Diante desse enredo por si só curioso, Richard Linklater brinca em “Assassino Por Acaso” com o próprio ideal em torno da figura do assassino de aluguel. Ele subverte essa noção construída pelo cinema, como demonstra a montagem com um compilado de cenas de várias obras que contam com essas figuras. Portanto, ele estabelece o contrato como uma fantasia: conseguir contratar alguém disposto a matar por uma soma muitas vezes irrisória. A fantasia se materializa de forma até mais frontal pela própria interpretação e performance. Gary se veste, maquia e incorpora uma persona específica que satisfaça o que cada um deseja, uma arte da multiplicidade do ser. Neste sentido, o trabalho de maquiagem e figurino adquirem uma importância na própria diegese e também amplificam a carga cômica. A montagem mais dinâmica propõe cenas curtas entre os diversos assassinos e a transição com os contratantes tendo suas fotos tiradas para o arquivamento policial. Conforme mais diferente Gary fica e a simples panorâmica que revela o cliente, as cenas ficam proporcionalmente mais engraçadas.

Mas se a comédia se destaca aqui por essas mudanças de Gary, ou até pelo contraste que a montagem cria pela alternância das cenas entre o professor mais acanhado e o descolado Ron, o romance também é bem desenvolvido. Para Linklater, o gênero não é novidade. A trilogia do Antes (Antes do Amanhecer, Antes do Pôr do Sol e Antes da Meia Noite) é a obra, ou conjunto dela, em que o diretor melhor sintetiza sua criação e desenvolvimento para as diversas faces do romance. Neste filme, porém, o romance se afasta do ideal proposto por Céline e Jesse no vagão do trem. Nada fora do apartamento de Madison importa a não ser o amor entre ela e Ron. É físico, sim, mas emocional na medida do possível, evitando perguntas mais pessoais, fechados naquele mundo de amor tórrido. Nisso, o cineasta constrói uma relação cheia de vigor, tesão e paixão, com planos fechados na pegação e uma conexão muito palpável entre os atores.

Assim, é interessante observar a crescente de Glen Powell como um galã no star-system de Hollywood. Em evidência desde “Top Gun: Maverick” (2022), o ator também ganhou os holofotes com “Todos Menos Você” (2023), comédia-romântica com Sidney Sweeney. Já em “Assassino Por Acaso” que lida com uma comédia por vezes mórbida, mas no geral romântica, a conexão com Adria Arjona é fundamental para criar esse tom de leveza e diversão que paira por toda rodagem. A atriz também se mostra versátil dramaticamente, não apenas um rostinho bonito. Indo de uma sedução bastante natural, sobretudo quando a fotografia pende ao neon, para uma sagacidade cúmplice com Ron, em uma das cenas mais engraçadas do longa.

Portanto, grande parte do mérito do longa se estrutura no trabalho de atores e no texto afiado e inusitado de Linklater e Glen Powell, que assinam o roteiro. O letreiro inicial que antecipa a inspiração real para o longa, evidencia como o diretor não se mantém no protocolar para explorar histórias reais, até mesmo a narração é pouco usada. Um exemplo dessa liberdade do diretor se dá em “Bernie” (2011), no qual utiliza do mocumentário, gênero que explora a linguagem documental, mesmo sendo ficcional, para contar a história de true crime. Dessa forma, é com liberdade narrativa e leveza que Linklater faz o real mais interessante, brinca com as convenções narrativas, e traz uma das comédias mais envolventes do ano até aqui.

4 Nota do Crítico 5 1

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