As Oito Montanhas
Uma ode épica sobre a amizade
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2022
Inquestionavelmente, todo filme é visto de forma diferente por cada um de nós, porque trazemos em nossos olhares uma bagagem emocional e subjetiva das percepções captadas acontecidas ao redor. Cada espectador assiste a uma obra de um jeito, dependendo da inocência, projeção e/ou estágio comportamental do momento. E é essa a grande maestria do cinema: a possibilidade de expandir e/ou definir entendimentos. Exibido no Festival de Cannes 2022, “As Oito Montanhas” pode ser traduzido como uma ode fraterna à amizade, uma amor incondicional e afetivo ao desejo de se ter a pessoa identificada a seu lado, cuja narrativa se desenvolve pela metáfora existencialista dos italianos, de curtos instantes fragmentados, por uma narração que explica os sentimentos que acontecem na alma e pelo tempo neo-realista de pausa metafísica, em que o sensorial está no sentir o silêncio, a espera, o tédio e na busca de se humanizar as idiossincrasias que nos definem como ser humanos, muito antes de indivíduos sociais, como por exemplo, nos diálogos ”Vai sobreviver? É difícil saber. É uma árvore estranha. Muito forte onde germina, mas vulnerável quando a mudam de lugar. Já tentou? Sim. E como foi? Ruim”.
Como foi dito “As Oito Montanhas”, dirigido por Felix van Groeningen (de “Querido Menino” e “Alabama Monroe”) e por sua esposa Charlotte Vandermeersch, estreante na direção de um longa-metragem, é sobre a amizade, em que um vê no outro um espelho, entre a admiração e aceitação. De descoberta, troca de ensinamentos (muito mais de um que o outro, lógico) e não necessariamente sexual (ainda que os olhares de muitos possam deturpar a pureza estrutural). De apenas gostar, sem realmente saber o porquê. E que é preciso até potencializar o egoísmo como forma de proteção. O que não se define, não se limita. Nunca morre. Mas se algum resquício de pragmatismo racional vier à tona, então o desequilíbrio é inevitável. Aqui, complementado pela fotografia coloquial e de formato de tela em quadrado – como sendo uma fotografia nostálgica, essa amizade dos protagonistas não estão na sugestão a um “O Segredo de Brokeback Montain”, tampouco “Close”, “Me Chame Pelo Seu Nome” e “First Cow”, ainda que a estrutura narrativa seja semelhante, mas sim está na ajuda mútua, à moda bem mais de “Boyhood” e da animação “Luca”, da Pixar, em uma relação recíproca de intervenções naturalizadas estimula o “necessitado” e “perdido” na vida a se encontrar. Na verdade, as duas personagens neste filme representam os opostos, que se unem para ocupar os espaços e os vazios, provocados por um deles, ora por rebeldia, por infantilidade, ora por não saber mesmo, entre olhares estendidos, cúmplices e de instantânea mensagem visual.
“As Oito Montanhas” é também sobre recuperar um tempo. Em reencontrar acalento na natalidade do passado. Em domar o inexplicável “monstro interno da árvore estranha” de não se encaixar no mundo, que queima opções e boicota a felicidade. Talvez por causa da culpa desse retroalimentado egoísmo sentido na infância, que pode ser entendido como um medo-pressão de desapontar o amigo, de que na cidade-realidade a vulnerabilidade e a ideia de rotina podem desandar tudo. O filme, embalado pela trilha sonora de Daniel Norgren, não tem pressa em construir o tempo sútil dessa memória, contemplativa e de naturalidade rural, no presente, entre a chuva que impede o brincar, a melancolia da saudade e o reencontro que mudou o tom, época e costume ao desconfortável. É como se no momento exato desse sentimento antigo, um de nossos protagonistas embarcasse no próprio inferno de desistências.
O longa-metragem é também sobre acordar a fluidez sugerida e os propósitos anestesiados pela lembrança etérea e espectral dos impulsos desmedidos da infância, como objetivos quase impossíveis, por exemplo, o Monte Evereste. Assim, a narração de “As Oito Montanhas” funciona como uma terapia ao próprio narrador. Uma libertação. Contudo, aqui, há uma quebra. Parece que após 50 minutos de duração, um que de preâmbulo estendido, outro filme é apresentado, este sim a vivência dessa análise cognitiva. E mesmo que mantendo o ritmo do tempo estagnado, ainda assim, sentimos a mudança. Não se sabe se isso acontece talvez pela obra estar na competição oficial de um festival de cinema, e que, de forma inerente todos nós acabamos por julga-lo e compará-lo ao grupo de longas-metragens que estão sendo exibidos. Sim, essa é a grande questão. Então, como conclusão, “As Oito Montanhas”, baseado na obra homônima do autor Paolo Cognetti, é uma crônica temporal sobre uma jornada épica de amizade entre duas pessoas tão diferentes e “estranhas”, que nos ensina que a vida é mais simples do que se pensa e que talvez só saberemos após quatro décadas. O filme talvez busque economizar nosso tempo, ora recomeçando com novas tramas, novos atravessamentos, novos abandonos, novas tentativa de reconexão, novas viagens, novas histórias, Puri e a inferência a “Gabriel e a Montanha”. Talvez tudo isso seja mesmo uma patológica insatisfação existencial da personagem, que caminha, não nunca encontra o que e os porquês do que está procurando. “Deixe-me ir, preciso andar, vou por aí, a procurar”, já dizia Cartola.