Aquele que Viu o Abismo
A agonia de uma lápide
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de Cinema de Tiradentes 2024
A arma apontada para a cabeça é o delírio que se expande em um caos desordenadamente controlado. “Aquele que Viu o Abismo” de Gregorio Gananian e Negro Leo, é como uma carro que entra na curva à 300km/h, porém devagarinho. Em um turbilhão experimental, transitando entre uma sonoridade ruidosa e uma musicalidade quase idílica, o filme vai se estruturando em um amontoado de imagens que nos parecem tão íntimas quanto delirantes, acelerando para um o transe que é fragmentado por uma montagem, assinada por João Dumans e Gregorio Gananian, que se esforça para articular uma experiência intensa diante da tela grande.
“Aquele que Viu o Abismo” premiado na Mostra Olhos Livres na 27a Mostra de Cinema de Tiradentes, é um dos longas mais conscientes que experienciamos ao longo da Mostra, pois apesar de sua presença vulcânica e uma possibilidade de compreensão limitada pelas características do filme, a grande possibilidade avistada ao longo da experiência diz sobre uma discussão permissiva de estéticas e linguagens que faz dessa grande paranóia do protagonista um objeto interessante de análise. Por exemplo, existe uma cena particular onde Negro Leo assume um caráter violento e começa a disparar contra formas de represetação de pessoas, silhuetas que desmoronam diante da ira do personagem, funcionando bem como projeções sociais ou artificiais, daquilo que procura enfrentar. Por essa razão, uma questão particularmente funcional que a obra propõe, está diretamente ligada ao que essa experiência oferece como ponto de equilíbrio um cinema-imagético-textual em proporções de escalas, com falas em off que traduzir um pouco do arcabouço psicótico e imagens que corroboram com uma certa exposição dos dispositivos que são oferecidos por essa mesma modernidade que parece assombrar a projeção.
Nessa inserção a um mundo globalizado, a viagem se configura como objeto de dualidade, sendo um referencial estrutural do projeto é uma espécie de multifacetação do ser, com conflitos culturais, traços de cinema de gênero e uma reverência musical que deve ser mencionada. Com a trilha sonora assinada por Negro Leo e “trilha sonora adicional” por Henri Daio, “Aquele que Viu o Abismo”” possui uma das travessias mais intensas dos últimos tempos na Mostra Tiradentes, sendo capaz de guiar o espectador por um tortuoso caminho entre o inferno e o idílico. Por essa razão, nessa proposição de um cinema com largos extremos, uma das cenas que mais se destaca é Negro Leo tocando piano em um de seus transes fatalísticos, em um arranjo de inflexão do mais profundo desespero com a beleza da agonia absurdista. Não por acaso, entre imagens computadorizadas e um retrato particular de China, o longa culmina em uma lápide tão suicida quanto revoltada, refletindo espaços e tempos através dessa constância do desgraçado.
É interessante que o projeto não faça nenhuma menção explicativa desse vulcanismo que se projeta na tela por setenta minutos e tenha horror a uma descrição que encerre as possibilidades interpretativas e sensoriais, como ficou claro no discurso de agradecimento na cerimônia da Mostra. Por conta dessa impostura diante das resoluções fáceis, o prêmio foi bem direcionado quando levamos em consideração a proposta temática da Mostra.
Enquanto discurso, “Aquele que Viu o Abismo” pode parecer intransigente em uma primeira exibição, mas pode ser ainda mais em outras tentativas. Não é recomendado que haja interpretações apressadas e explicações imediatas. A melhor forma de compreender o que a experiência pode te oferecer, é abstrair qualquer formalidade e apenas adentrar na irreverência do desconforto casual, como a obra de Gregorio Gananian e Negro Leo costuma projetar. O que se destaca aqui é justamente onde termina a sanidade e começa agonismo delirante, uma espécie de projeção concreta da velha dicotomia sociológica entre a sociedade e a representação.