Annette
A ópera de Carax
Por Vitor Velloso
Festival de Cannes 2021
Leos Carax é um cineasta de características particularmente singulares, dificilmente confundido com seus contemporâneos, mas suas ideias (tidas como) subversivas, encontram um grave limite em “Annette”, seu último lançamento. Desde “Boy Meets Girl” (1983), ficou claro para o cinema francês que as aproximações do caráter digressivo entre as ruas e uma performance escandalosa das ações dos personagens, reacendeu uma série de proposições feitas pela Nouvelle Vague duas décadas antes.
O que o diretor apresentava nas sucessivas investidas de uma orquestra marginal, foi dialeticamente confrontado nos filmes que sucederam o projeto, especialmente ‘Les amants du Pont-Neuf’ (1991), que não apenas radicalizava o drama, como provocou uma problemática da encenação. Entre a performance melodramática exacerbada, o musical e o romance, a brutalidade dos espaços e a profundidade de campo, Carax chegou a “Holy Motors” (2012) como uma síntese dessas provocações, e seu esgotamento. O maior mérito foi a capacidade de conciliar a constante encenação anunciada com a falsa sensação de compreensão do espectador, acrescendo tantas dúvidas durante a projeção que a experiência se tornava unilateral e imediata, como o percurso do personagem que conhecíamos tão pouco, mas que se confundia na própria narrativa.
“Annette” procura repetir essa dose na linguagem, ainda que menos radical, como assume o caráter espetaculoso e operístico de cada sequência, seccionando os pequenos espaços para um tom íntimo em meio à grandiosidade de um suposto palco, constantemente representado. O problema é que se anteriormente essa ideia funcionava a partir do próprio contraste que a montagem provocava, com seus momentos definidos como novas etapas de um ato em andamento, aqui a ambição é ainda maior. O fluxo é praticamente ininterrupto, em uma crescente tão fatalista quanto sombria. Henry (Adam Driver) e Ann Desfranoux (Marion Cotillard) interpretam um dos casais mais mórbidos dos últimos tempos, em uma íntima ligação traumática com a ausência paterna e materna, onde a morte encontra o futuro, na medida em que retoma o passado. Se isso fica claro na virada dramática que acontece na metade do longa, a proposta se torna ainda mais obscura com as múltiplas rupturas na relação dos personagens. Esse movimento é agravado por uma fotografia que procura a artificialidade em seus primeiros minutos de projeção, se relacionando com os espetáculos e como o mercado molda não apenas as características da arte produzida, como do subjetivo dos produtores e consumidores.
Recorrentemente os enigmas da vida e da arte, e onde elas se encontram, aparecem como fantasmas de uma discussão infindável. A suposta falta de resolução da questão dinheiro e arte, só é possível em um universo onde a “cultura se torna produção de valor de troca, não de uso”, como explicou Gilberto Vasconcellos ao citar Samir Amin. Assim, Leos Carax tenta materializar os demônios que tomam conta de seus personagens, em uma simbiose com o próprio cineasta, na figura de quem detém o controle dessa encenação. Paradoxalmente, o primeiro filme americano de Carax é uma drástica queda na compreensão dessa relação de espaço x tempo e o expurgo da realidade, assimilando alguns cacoetes comerciais para tornar a experiência menos volátil, como de costume. Não por acaso, se “Holy Motors” conquistava pelo interesse no estranho e no obscuro, “Annette” se perde em ciclos intermináveis de indagações e delírios monotemáticos, tão arrastados que pesam na experiência. Por mais que Adam Driver e Marion Cotillard consigam extrair de seus personagens a essência dessa obscura dúvida entre o desejo forjado e o particular, a proposta é limitada pelo pulso dessa continuidade grandiosa.
A grande ópera é interrompida pela falsa sensação de progressão, contraposta com o ritmo precoce de transições que muito acrescentam nas características individuais dos protagonistas, mas sobrepõem a série de elementos apresentados ao longo da narrativa. Se a categorização de minimalista soava contraditória no cinema de Carax, “Annette” confunde ainda mais as opiniões a seu respeito, seja no caráter eloquente dessa epopeia de sucesso e queda, ou na enfadonha relação da arte com os traumas e ausências subjetivas. Essa exposição é tão clara que se as funções possuem relativa importância na compreensão do filme, a profissão de cada personagem não foge à regra.