Alma Viva
Luto entre o real e o fantástico
Por Pedro Sales
A infância é uma fase em que se aprende a perceber o mundo ao redor, isso significa também certo amadurecimento e diferenciação em relação ao real e imaginário. Em “Alma Viva”, representante de Portugal ao Oscar de Melhor Filme Internacional, a pequena protagonista enfrenta essa dicotomia sob um outro prisma, a da crença e fé no sobrenatural. Nesse contexto, sobrenatural não diz respeito apenas à fé religiosa, mas em uma genuína confiança na existência em espíritos, fantasmas e mensagens do além. A diretora Cristèle Alves Meira pontua essa naturalização desde o início, uma vez que constrói a fé no sobrenatural como coletiva. Além disso, há também uma ressignificação da crença para a criança quando ela tem o contato com a morte, não é o primeiro – logo na introdução velam um corpo -, mas é o mais impactante em razão do vínculo familiar. A cineasta, entretanto, falha em tentar por vezes transformar o longa em terror.
Salomé (Lua Meira Michel) é uma menina que vive entre Portugal e França. Nas férias, ela fica no vilarejo português em uma casa cheia, com todos da família, incluindo a avó (Ester Catalão). Juntas, rezam para São Jorge, guardam confidências e fazem torneios de twerk ao som de “gosta de esfrega-esfrega”. A graciosidade e leveza da relação, porém, não dura muito. Repentinamente a avó morre e a criança deve aprender a lidar com o luto e com o sobrenatural, mas agora de outra maneira. Na introdução, a diretora pontua o que será uma das tônicas do filme: a observação infantil. A pequena Salomé espia o velório de um familiar por entre frestas e vidro texturizado, que naturalmente deforma o que se vê. A perda, no primeiro momento, significa apenas mais um contato com o sobrenatural e quase mediúnico na família. Rezar pela passagem do espírito, prestar devoção à Nossa Senhora.
Cristèle Alves Meira explora nestes minutos iniciais, e ao longo de toda rodagem de “Alma Viva”, a plasticidade da imagem. Se o corpo quase não é reconhecível para a criança, isso se dá por um trabalho de câmera que preza pelas sensações da protagonista. Da mesma maneira, a plasticidade se dá pela iluminação bruxuleante das velas ou a iluminação natural fraca dentro de casa, realçando o caráter de simplicidade do vilarejo, mas promovendo também a atmosfera de contato com o mundo dos vivos e dos mortos. A maior preocupação, porém, é registrar pelos olhos de Salomé. Dessa forma, o filme faz uso constante da câmera subjetiva, que emula a visão da personagem. Além disso, quase sempre a câmera está ao nível dos olhos da criança, o que reforça não só o protagonismo, mas também a ideia de que o público vê tudo pelas lentes dela.
Enquanto a observação infantil é um pilar extremamente basilar para obra, ele está fortemente atrelado ao contato com o sobrenatural. Como exposto, esse fator está no filme desde sua introdução. É importante ressaltar que aqui ele é extremamente naturalizado, todos na casa confiam em mandingas, crendices e na potência curativa de um chá de arruda, inclusive Salomé. Portanto, trata-se muito mais de um aspecto cultural daquela família, que ao mesmo tempo também é devota a santos, representando um sincretismo que para nós brasileiros é tão característico. Ou seja, o sobrenatural está como crença e não como elemento estranho, como em um filme de terror. O flerte com o gênero surge, no entanto, a partir do momento em que a avó diz a Salomé que ela tem o “corpo aberto” e é vulnerável a espíritos, dando indícios do que pode vir a seguir.
“Alma Viva” então passa a transitar por um verniz realista e fantástico. O realismo palpável são os preparativos para o velório, as burocracias de se escolher caixão, dividir herança. As discussões acaloradas entre os filhos sublimam, de certa forma, o luto. O fantástico, por outro lado, está com Salomé que sente em si a alma da avó e depois disso passa a ter comportamentos noturnos agressivos, considerados demoníacos. “A menina tem o diabo no corpo”, diz uma de suas tias. O reforço desse estigma diz respeito à família toda. Um vizinho alega que “a família tem poderes diabólico” e, depois, torna-se claro que a avó foi acusada de ser bruxa. O motivo: ter “roubado” o homem de uma outra mulher do vilarejo. Apesar da clareza em relação ao preconceito enfrentado pela família, a cineasta tenta usar Salomé como motriz para pender ao terror. Isso não se dá efetivamente, pois a criança possuída parece estar muito mais sob um poder de sugestão. Assim, a demonstração do comportamento agressivo da menina é muito mais enriquecida pela leitura de ser uma forma de demonstrar o luto.
Nesse sentido, o longa português remete a duas obras espanholas que tratam muito bem do sobrenatural e da morte. Em “O Espírito da Colmeia”, de Victor Erice, uma menina fica impressionada depois de assistir a Frankenstein, ela passa então a acreditar na existência do monstro e tenta encontrá-lo em um celeiro. O mesmo se dá com Salomé, se a protagonista do filme de Erice crê no fantástico pelo temor, a menina desta obra confia nos espíritos como forças do bem, por assim dizer. É por isso que ela acredita estar sendo invadida pela avó para aparar algumas arestas e vingá-la. Em relação a este último ponto, a responsabilidade por vinganças, associa-se a “Cría Cuervos“, de Carlos Saura. No filme espanhol, uma menina interpretada por Ana Torrent – que também é a protagonista do filme de Erice – acredita piamente ter controle sobre a vida e a morte das pessoas da casa. Como forma de “vingar” sua mãe morta, ela prepara metodicamente um veneno para suas vítimas.
“Alma Viva” é um longa sobre morte, sobre fé e sobre família. A diretora estreante, Cristèle Alves Meira, não demonstra dificuldade alguma em desenvolver essa trinca temática. Pelo contrário, por meio de uma direção delicada, a cineasta constrói esses temas sob o olhar infantil. É necessário também apontar o magnetismo da pequena atriz Lua Meira Michel que demonstra amplitude do descontraído ao dramático. Apenas os momentos de flerte com o terror que não são tão bons, mas funcionam quando o espectador põe o elemento sobrenatural sob incerteza, crendo que a criança fez porque quis. Além de habilmente construir separadamente cada um desses assuntos, a realizadora ainda converge os três a partir da procissão, onde a família enfrenta o estigma e o preconceito tacanho de outros habitantes do vilarejo. Juntos, eles cantam, fazem o que a mãe, ou avó para Salomé, mais gostava. O uso da música no filme, inclusive, é muito acertado, sobretudo a diegética, isto é, quando não é trilha mas os próprios personagens escutam ou performam as canções. Um exemplo é quando a banda toca enquanto a menina parece atravessar o mundo dos vivos e mortos ou quando avó e neta, em um momento de fé, cantam a São Jorge Guerreiro.