Ainda Temos a Imensidão da Noite
Não Pense Demais
Por Jorge Cruz
Não há nada pior para quem inicia mais um dia pouco desafiador do que ser acordado com o barulho da obra inesperada do vizinho. “Ainda Temos a Imensidão da Noite” escolhe esse evento na vida de Karen (Ayla Gresta) para iniciar as qualificações da protagonista. Uma jovem que segue o caminho tradicional do proletariado inescapável e usa qualquer tempo disponível para alimentar o desejo de viver de música, de arte, de cultura.
Brasília, que nos anos 1980 era conhecido como um dos berços do rock nacional, não se mostra receptiva àqueles que querem levar um som. Aliás, esse gênero musical, tão transgressor e relevante para as efervescências da sociedade da segunda metade do século XX, envelheceu de tal maneira que qualquer obra disposta a promover o rock como objeto parece necessitar do elemento da nostalgia. A territorialidade abordada em “Ainda Temos a Imensidão da Noite” tem poder de identificação com qualquer morador de cidades médias e grandes. Pessoas que viram todos os locais onde, na juventude, suas músicas preferidas pudessem ser consumidas, caírem em decadência ou fecharem as portas.
Pois é dentro desse recorte de sociedade em crise que o longa-metragem vai trançar sua história. O diretor Gustavo Galvão também é um dos roteiristas e pauta a introdução do filme na construção de uma Karen que parece nunca descansar. Um emprego repetitivo e estafante e uma família problemática em casa. Ela ainda cai no erro cada vez mais comum entre a Geração Y que é tentar transformar o pouco de diversão em uma atividade que possa ser monetizada. É nesse ambiente que o primeiro ato se desenvolve, todo ainda em Brasília. Uma produção independente que faz escolhas estéticas que nos remetem a um filme oitentista, principalmente na adição de números musicais inteiros nas transições de blocos de cenas.
Refletir sobre os fundamentos e motivações dos personagens de “Ainda Temos a Imensidão da Noite” é um exercício promissor no primeiro momento. Nutrirá simpatia por Karen aqueles que comungam do entendimento de que há quase uma condição de sobrevivência que nos leva a criar sonhos paralelos que fatalmente se chocarão com a dura e intensa realidade. Sua crise identitária, que faz com que ganhe força o sentimento de deslocamento, é o mesmo pelo qual passa o tipo de música que ela costuma tocar. Porém, é sempre bom tratar essa romantização da mudança que na verdade é uma constante fuga da realidade com cuidado. Defendemos nas críticas de “Estaremos Sempre Juntos” e “O Estrangeiro” que esse processo disruptivo é um fenômeno típico da classe média, principalmente quando se observa longo período de crise econômica. Um dos momentos mais inspirados do roteiro, mesmo que não tão óbvio, é a visão bem particular da protagonista acerca da canção “Caravana” de Geraldo Azevedo. Parece que é a partir daqueles versos que ela se enche de coragem de buscar algo diferente de qualquer coisa. Quase como se abrisse a geladeira com muita fome, mas não encontrasse ali o que poderia comer, pelo simples fato de não haver certeza do próprio desejo.
Da mesma forma que vale reiterar que isso não desautoriza ou tira força de uma obra com tal abordagem. No filme de Galvão fica até mais claro que há na protagonista uma mistura de consumação desmedida com o próprio desejo de fuga. A questão é que o segundo ato, que se valerá do intercâmbio cultural de Karen e Artur (Gustavo Halfeld) com o alemão Martin (Steven Lange), amplia as inserções musicais ao mesmo tempo que retorna todo o momento aos fundamentos da crise que levou os dois brasileiros a se mudarem para Berlim. Essa proximidade comportamental e de uso do espaço urbano por brasilienses e berlinenses não é explorada. Há apenas a mesma ideia se repetindo para provar o óbvio ponto de que a felicidade não se constitui apenas do lugar onde você está.
“Ainda Temos a Imensidão da Noite” ganha um pouco de força na reta final. Não apenas porque Karen pede um pastel com caldo de cana assim que recoloca os pés em solo brasileiro – algo que todos nos faríamos se fosse possível no aeroporto. Tal qual a própria protagonista, o filme parece que se reenergiza. Porque, de fato, é apenas isso que a classe média precisa para encarar a “vida real”. Karen parece não ter aprendido a lição, ao criticar o amigo de 27 anos que decide tirar o pé da vida menos regrada e passa a jogar com mais disciplina o jogo do capital. Um diálogo longe da realidade de quem muito antes dessa idade precisa ganhar o mundo para sobreviver. Mesmo assim, o filme ganha ao entregar no ato final um conteúdo passível de debate – mesmo que se arraste em atos preparatórios descartáveis nos momentos que o antecedem.