Afire
Orgulho em Chamas
Por Pedro Sales
Festival de Berlim 2023; Mostra de São Paulo 2023
Quando Narciso se apaixonou pela própria imagem, o orgulho e beleza se tornaram a ruína dele, afogou-se em si, no reflexo projetado nas águas. Em “Afire”, o protagonista do longa se assemelha em alguns aspectos à história grega. O diretor Christian Petzold, porém, não opta por uma releitura do mito, como fez em “Undine” ou em “Phoenix”, referenciando o clássico “Um Corpo que Cai”, de Alfred Hitchcock. Aqui, há uma premissa original, o homem narcisista não se afoga em si, por mais que tente, mas enfrenta a dureza de uma realidade em que talvez ele não seja tão bom quanto pensa. O cineasta é, então, extremamente competente em fazer o público se interessar por alguém dotado de arrogância. Os louros são, claro, de Petzold e sua mise-en-scène clássica, e também dos atores, que habilmente nos colocam na montanha russa de orgulho, humor pontual e amadurecimento.
Leon (Thomas Schubert) e seu amigo Felix (Langston Uibel) vão para uma casa de praia. Cada um deles com uma tarefa: o primeiro, terminar de escrever um livro; o segundo, realizar um ensaio fotográfico. Se o local tinha tudo para ser um idílio criativo, logo Leon demonstra seu descontentamento ao descobrir que outra pessoa estaria lá, Nadja (Paula Beer). Essa desconfiança, no entanto, torna-se desejo reprimido, e o calor do verão e do incêndio florestal parece amplificar ainda mais as emoções. O clima solar evocado por Petzold, sobretudo no início do longa, possui uma verve rohmeriana. Nos filmes de Éric Rohmer, as paixões se desenvolvem à beira do mar, na praia, como em “Conto de Verão” ou “Pauline na Praia”. A maior semelhança se dá, entretanto, com “A Colecionadora”. Em ambos os filmes, a mulher atrai o homem, os jogos amorosos na casa não dão em nada, então ele tenta desmoralizá-la.
Apesar desta introdução quase romântica, com a admiração distante de Leon por Nadja e depois um certo desdém por ela estar com outro, “Afire” vai bem além disso. Outro ponto extremamente importante é o drama da autoimagem do protagonista. Mergulhado no seu manuscrito, ele recusa toda e qualquer possibilidade de diversão com Felix, Nadja e Devid (Enno Trebs), o amante de Nadja que interrompe a noite de sono da dupla de amigos. “O trabalho não deixa”, diz ele aos outros e também a si mesmo, tentando se convencer. Portanto, essa importância exacerbada ao trabalho impede que ele se conecte aos demais. Ele se acha melhor que todos ali. Recusa-se a deixar que leiam seu texto, afinal, podem não entendê-lo. O cineasta, então, começa a extrair humor do orgulho e narcisismo do protagonista. Pontualmente, ele demonstra como todos os outros ao redor são mais interessantes que Leon, tanto para o espectador quanto para o editor do livro, a única pessoa com quem o protagonista se preocupa com a opinião. A leitura de um poema parece um ataque, cada palavra um golpe.
Dessa forma, as intrigas domésticas de “Afire” se estruturam no desejo, amor, orgulho e arrogância. Petzold consegue explorar muito bem esse quarteto até chegar a um tom mais dramático, que também é desenvolvido excelentemente. O amor e desejo começam à distância, quase sempre filmado com a câmera subjetiva, como se o olhar de Leon espionasse aquela mulher que ele ainda não conhece, mas que já o intriga. Posteriormente, a química entre Schubert e Beer demonstra certa ingenuidade no jogo amoroso, em que ele não sabe como se portar. O mesmo também para o orgulho, sempre estampado na expressão blasé de Schubert. A mise-en-scène sempre clássica de Petzold brinca também com a poesia visual. Cenas como a brincadeira noturna com as raquetes de neon, a solidão na noite azul ou o quarteto observando o vermelho do incêndio tomar o céu representam essa mescla.
“Afire” é um longa que realiza a difícil tarefa de aproximar o público de um personagem assumidamente narcisista. O humor sucessivo quando todos os outros parecem ser mais interessantes do que ele corrobora para o último ponto da obra: o amadurecimento. A chuva de cinzas já é um indício dessa mudança, é a chegada daquela realidade que parecia distante. Na arte, é preciso destruir para reconstruir, e é isso que acontece. Assim, a sucessão trágica é, de certa forma, uma destruição, aqui em aspecto emocional. A “virada” na maturidade é facilmente identificável, porque Petzold faz questão de materializá-la formalmente na obra. A inserção da narração, em um off extremamente descritivo e metanarrativo, potencializa as emoções já à flor da pele, é também a melhor forma de demonstrar a evolução do personagem, o orgulho em chamas. Uma conclusão inegavelmente catártica. Portanto, o vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Berlim 2023 é uma obra que competentemente transita por diversas emoções, a diversão, amor e o desejo tangível na casa, na arrogância vazia de um artista em crise e, em última análise, no amadurecimento.