A Verdadeira Dor
O tour às raízes para preencher a patologia do vazio
Por Fabricio Duque
Festival do Rio 2024
Talvez a verdadeira dor seja mesmo totalmente subjetiva, individualista e nem um pouco coletiva, ainda que o social a categorize na comoção de seus participantes afetados por crises, tragédias e crueldades da História, como foi o fato, ainda de ferida aberta, do Holocausto e seus efeitos traumáticos-estruturais de um fascismo deteriorante e violentamente radical. É muito curioso que ainda hoje, em 2025, se discuta voltas e pautas desse acontecimento que levou à morte milhares de pessoas e tenha como iminência os sofrimentos do passado, modernizados numa “nova fase velha”, especialmente com a forma de condução política e xenófoba de Donald Trump. Pela psicanálise, nós talvez consigamos compreender melhor que esse sofrimento é intrinsecamente particular a cada um, que o sentirá de uma maneira e com intensidades motivadas pelas ideologias do comportamento humano e os níveis de empatia pelo próximo.
O parágrafo anterior se explica, legalmente, porque nós somos seres com identidades únicas, com CPF únicos e com digitais únicas. Nós nunca seremos iguais, por mais que a sociedade tente padronizar certas emoções e reações. Por mais que as religiões nos igualem. Todo esse preâmbulo pode ser porta de início para as análises do novo filme de Jesse Eisenberg, “A Verdadeira Dor”, presença marcante nas premiações de cinema do ano, incluindo o Oscar. Mas o que faz sua obra ser tão icônica, aprofundar tanto um tema e fazer este crítico que vos escreve remoer durante semanas o filme antes de começar o trabalho da “tradução”? Curiosamente não é pelo mote de trazer à vida e à emoção a tragédia austríaca-alemã, que vira e mexe volta como plot nos filmes, mas sim por construir uma narrativa imersão naturalista, de identificação sensorial, de uma metafísica que potencializa o exato instante da realidade presença e os mais cirúrgicos sentimentos derivativos.
Em “A Verdadeira Dor”, essa narrativa busca a estética editada do cinema direto (encenado ao real blasé), que evoca Woody Allen (principalmente “Manhattan”) e Noah Baumbach (e seu “A Lula e a Baleia”), que dá realismo coloquial e metafísica lúdica (que suspende o tempo, criando uma atmosfera dessas invisíveis idiossincrasias do sentir e tão particulares ao ser. É um filme também sobre mostrar-se aos outros. Aqui, as personagens expõem-se entre impulsos, manias, competições veladas. Algumas são mais tímidas, outras mais expansivas e carismáticas, mas por dentro sofrem a dor silenciosa dessa hiper-exposição, que suga a energia, indo da euforia desmedida a uma apatia quase vegetativa. Tudo porque há uma solidão patológica e co-dependente ao outro, que o usa como complemento, alimento e força para que se possa continuar a existir.
Em duas das cenas de “A Verdadeira Dor”, a do início e a do final, a sutileza da inversão do título do filme na tela fornece todo o material às elucubrações que não paramos de ter. Se no antes, o tempo de espera tinha um propósito de “salvar” o vazio com a iminência da chegada de um outra alguém aguardado; o depois retira a própria expectativa de um futuro e há o retorno desse vazio. Sentir para si e não como algo aparentado para o outro. “A Verdadeira Dor” é uma experiência on the road, de dois judeus novaiorquinos que vão a Polônia para fazer o tour ao campo de concentração de Auschwitz. Pois é, Jesse Eisenberg consegue criar uma empatia tão natural e transpassar toda a mensagem de dor internalizada em “A Verdadeira Dor”, o que a diretora alemã Julia von Heinz tentou muito em “Tesouro” (tragicomédia protagonizada por Lena Dunham e Stephen Fry) e só alcançou um resulto bem superficial, pululado de gatilhos comuns e clichês do gênero.
Aqui, nesta obra em questão, Jesse, que também atua como um dos protagonistas, ao lado do “Sucession” Kieran Culkin, quer mitigar os excessos e estender os silêncios (e introspecções). Esta é um filme de cenas, de mergulhos a complexidades do ser que precisa “integrar” o seu eu sozinho à convivência social, repleta de outros indivíduos “perdidos” em procura de suas identidades, estas que darão algum sentido (ou não) a suas existências. Destas personagens, um é pragmático, sistemático, austero e um pai em viagem de autodescoberta. O outro, seu primo, é excêntrico, abusado, contraditório e aventureiro (em todos os aspectos). Mas um escolheu a estabilidade e aceitou as limitações de viver em sociedade. Já o outro, esconde a vulnerabilidade pelo comportamento extrovertido. Os dois, em embate velado, de diferenças, escolhas e perspectivas de vida, buscam a conexão e ensaiam um reencontro mais promissor. Sim, “A Verdadeira Dor” é um filme de fora para dentro. Que não força a mudança. Que respeita o tempo e o jeito de sofrer. É um filme muito mais que apenas conectar um grupo de turismo às raízes familiares, às memórias e à cultura judaica (local), com foco por exemplo na avó deles. Sim, muito mais. É sobre a liberdade do sentir, visto que cada um encontra em detalhes específicos a razão e motivação para agir a própria mudança.
“A Verdadeira Dor” é uma intimista reflexão sobre a existência. Sobre essa invisibilidade que nos impede de ver porque já está automatizada demais. É permitir que o outro viva sua loucura diária. Suas manias. Seu jeito único, ora melancólico, ora técnico, ora eufórico. Assim, a maestria deste filme está em seu conjunto, equilibrado, de confiança despretensiosa e emocionalmente intensa, sem apelar a over, provando que quando o “menos é mais”, tudo faz diferença. E por último, é curioso também que haja uma sequência de filmes pró-Israel, num cessar fogo “pisando em ovos”, como “Viver a Vida”, a comédia pastelão brasileira que estreou junto a este nos cinemas. Ainda assim “A Verdadeira Dor” é bem verdadeiro quando questiona o que ainda é tabu de se questionar.