Mostra Um Curta Por Dia 2025

A Primavera

A Redenção e o patético

Por Vitor Velloso

Assistido presencialmente na Mostra de Tiradentes 2025

A Primavera

A alegoria é uma forma bastante útil e sintética de apresentar debates ou desenvolver reflexões, mas sua limitação para a formulação de teorias e conceitos concretos da realidade é conhecida. Não por acaso, teóricos recorrem a alegorias e metáforas para exemplificar algo específico ou traçar caminhos para suas reflexões. “A Primavera”, de Daniel Aragão e Sérgio Bivar, propõe uma representação particular da cidade do Recife, atravessando uma série de alegorias para denunciar sua realidade e sua “miséria moral”.

O filme encontra, por meio de um retrato anamórfico e caótico, uma forma de escancarar sua posição política, expondo símbolos e termos de um determinado espectro ideológico. Ora, o enquadramento é um gesto político por si só, e a forma de representação, seja imagética, seja social, complexifica esse gesto e posicionamento.   “A Primavera” constrange o público ao flertar com reflexões rasas, superficiais e moralistas sobre as discussões políticas contemporâneas, abrindo mão de construir uma estética ou uma proposta reflexiva sobre a realidade concreta para divagar entre poesias, câmeras invasivas e diálogos constrangedores. Quando um personagem menciona que seu cachorro, chamado Karl Marx, está à beira da morte e, em outra cena, outro personagem afirma que “a esquerda está morta”, expõe-se o cinismo mais vil que a Mostra de Tiradentes presenciou nesta edição. Não se trata de uma oposição ao posicionamento de parte da sociedade brasileira ou de uma parcela do público presente no Cine-Tenda, mas de uma falsa consciência política, com uma representação quase paródica e desrespeitosa de pessoas ligadas a um espectro político.

A ideologia aqui é traduzir o fel de representantes políticos que estavam – ou estão – no debate público contemporâneo em uma lógica de sketch, com uma dinâmica de videoclipe e uma constante descontextualização histórica, “poética” e dramática dos personagens e da cidade, que assume o papel de protagonista no longa. Aliás, durante a apresentação, um dos diretores menciona que se trata de um filme “poético”, afirmando que o público entenderia essa definição ao assisti-lo. Não foi possível compreender de onde surge essa certeza, mas é fácil perceber o equívoco: não é porque há poesia que o filme é poético. Essa falsa consciência presente em quase todos os elementos de “A Primavera” gerou desconforto nas pessoas que tiveram contato com o filme, especialmente naquelas que decidiram permanecer até o fim da projeção.

Não por acaso, o debate ocorrido no Yves Alves, no dia seguinte, tornou-se um bate-boca, no qual o descontentamento generalizado se traduziu em uma cena digna de menção: um dos diretores, Sérgio Bivar, filho de Luciano Bivar, defendeu-se de qualquer possível acusação, alegando não ter apoiado o antigo ocupante da cadeira presidencial, enquanto Daniel Aragão, que fotografou Jardim das Aflições (2017), de Josias Teófilo, adotou uma postura mais reativa e utilizou parte do elenco como escudo contra as críticas recebidas. A propósito, essa postura reativa, mascarada por uma falsa defensiva, caracteriza o cinismo presente no filme, que, acovardado diante da possibilidade de explicitar suas verdadeiras intenções, assume seu suposto traço “poético”, com imagens pretensamente belas e a verve decadente de um moralismo fragilizado por suas próprias contradições.

“A Primavera” busca redenção moral em um mar de intenções questionáveis, propondo uma jornada de personagens que representam certa ingenuidade – também caracterizada pelo espectro político presente no filme. Não por acaso, há adesivos de políticos na mesa do bar, menções ao governo que estaria “à direita” na rua, entre outros elementos. Os constrangimentos se acumulam, resultando no completo esgotamento da imagem e de qualquer possibilidade de debate em torno dessa representação particular do Recife, da política brasileira e da poesia.

Se a montagem dos primeiros minutos parece evocar uma caracterização labiríntica dessa proclamação constante de poesias e ambientes introspectivos, os diretores tratam de destruir esse proto-transe imagético para encobrir sua atrapalhada reprodução de discurso político e suas tentativas embaraçosas de representação social. Assim, o cinismo surge como a única saída para a atitude covarde de ter vergonha do que se pensa e/ou representa.

Por fim, “A Primavera” tornou-se um evento na Mostra Olhos Livres, em Tiradentes, gerando debates acalorados e discussões no Letterboxd (pouparemos o leitor dessa baixeza). As reações foram veementes de todos os lados, culminando em uma descompensação deselegante e agressiva de Daniel Aragão, que protagonizou um dos debates mais quentes dos últimos anos em Tiradentes – e isso é incontornável.

1 Nota do Crítico 5 1

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