Mostra Um Curta Por Dia 2025

A Garota da Agulha

Temor e Tremor

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2024

A Garota da Agulha

A Garota da Agulha”, concluído em 2024, é o longa dinamarquês candidato ao Oscar de melhor filme internacional – anualmente o mundo se divide em dois, aos olhos e ouvidos da “academia”: filmes produzidos nos EUA e o resto do planeta. Ou seja, mais uma tacada de marketing da terra do Tio Sam – como se fossem duas categorias à parte, a divisão consagra uma visão de mundo que ordena o mercado cinematográfico de forma arbitrária, nós e eles, condizente com que os americanos imaginam. Ouvir o atual locatário da Casa Branca falar sobre anseios expansionistas, por mais caricatos que sejam, compartilha, digamos, da mesma matriz conceitual.

O filme, dirigido por Magnus von Horn – sueco que estudou cinema na famosa Escola de Lodz, na Polônia, realizador do instigante “Sweat”, em 2020 – é um “pesadelo expressionista de uma mulher abandonada pela sociedade”, como expressou crítico do “Variety”, a bíblia do showbiz dos norte-americanos (e não do planeta). Ou ainda, dos estadunidenses, já que “norte-americano” inclui também os canadenses, que parecem não se inclinar por uma integração com os vizinhos do sul. “A Garota da Agulha”, que não tem nada a ver com essas querelas geopolíticas, é um filme artisticamente muito bem realizado, uma mescla de beleza e terror – melhor dizendo, de temor e tremor, título do livro de outro dinamarquês ilustre, Soren Kierkegaard. Sim, pois a excelência da fotografia, preto e branco contrastado, arrebata em todos os espaços cênicos, interior ou exterior, repugnante ou acolhedor.

Continue a trabalhar sua salvação com temor e tremor – a citação, da Bíblia (Filipenses 2:12), inspirou o filósofo dinamarquês e inspirou também Karoline (Vic Carmen Sonne), a principal personagem da trama. Karoline é uma jovem viúva e operaria numa fábrica têxtil durante a 1ª Guerra Mundial, logo manipula agulhas o dia inteiro. Ela participa da tecelagem de uniformes militares – e seu marido desapareceu há um ano nos combates. Não consegue pagar o aluguel onde mora, é despejada. À saída da fábrica – plano que repete o enquadramento da famosa imagem pioneira dos Irmãos Lumière – Karoline erra pelas ruas, desesperada, e acaba encontrando um quarto sórdido para viver.

A sorte parece subitamente virar quando a operária atrai o patrão, sujeito de origem nobre e educado, para um tórrido e fugaz caso de amor. Vem a gravidez, o sonho do casamento – desfeito brutalmente pela baronesa, mãe do hesitante e fraco patrão. Demitida na sequência, resta o ato limite do auto-aborto, por meio de uma enorme agulha, a ser consumado numa casa de banhos pública. É aí que entra em cena Dagmar, o outro polo dramático de “A Garota da Agulha”. Dagmar a convence de evitar o ato.

Nesse meio tempo, um homem de máscara grita seu nome do lado de fora dos portões da fábrica — é o seu marido, Peter, com o rosto desfigurado e monstruoso, signo do horror da guerra que grassava na Europa. Peter encontrou sua subsistência atuando num circo de horrores: mas ela o recusa. A mutilação de Peter, que funciona como espetáculo dentro do universo diegético do filme, é replicada no expressionismo das imagens. A criança nasce, Karoline procura Dagmar, cativada pela promessa de que sua nova conhecida encontraria uma família, mediante pagamento, para abrigar a filha. Saída dolorosa, mas incontornável, à luz da agonia que se instalou em sua vida.

Dagmar, ao contrário de Karoline, é uma personagem real: entre 1913 e 1920, fazia exatamente isso, atraia mães apavoradas pela incapacidade de criar filhos. O destino dos bebês, entretanto, não era um lar aprazível de pais cuidadosos e afetivos. Na ficção, Karoline acaba se ligando emocionalmente a Dagmar e à filha desta, Erena. Sua função é amamentar os bebês em trânsito – e também Erena, tímida e estranha, um pouco grande para mamar. Afinal, encontrou uma família, aniversários e momentos de lazer: Karoline junta-se a Dagmar no uso de éter para encarar o ofício da existência. A atriz que interpreta Dagmar, Trine Dyrholm, logrou construir uma personagem fria e objetiva, mas com vulnerabilidades reprimidas em algum subsolo inconsciente, que não a impedem de se ver como salvadora de mulheres caídas e exasperadas.

O mundo é um lugar horrível, murmura Dagmar em meio ao torpor do éter, mas precisamos acreditar que não é assim. Parece haver, por trás dos seus atos de violência, um raciocínio moral e espiritual.

4 Nota do Crítico 5 1

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