A Família Addams
Maturidade e Entendimento
Por Jorge Cruz
Quem não conhece pessoas que projetam nos filhos suas realizações? Partindo dessa interação familiar, “A Família Addams” se revela uma animação que atualiza o argumento criado pelo cartunista Charles Addams nos anos 1930. Com uma continuação em pré-produção, prevista para chegar aos cinemas em 2021 antes mesmo do lançamento do primeiro filme, o roteiro aposta em uma linguagem simples, alcançando um nicho de espectadores bem novos, como uma forma de atrair uma geração nova de entusiastas.
Mesmo que se escore em outras dispositivos narrativos modernos, o grande atrativo da trama continua sendo a chegada à adolescência de Vandinha (Chloë Grace Moretz) e Feioso (Finn Wolfhard). Tanto que qualquer tentativa de construir a gênese do casal Gomez (Oscar Isaac) e Morticia (Charlize Theron) se limita ao prólogo da obra. Por sinal, a música e os créditos de abertura, ambientando o espectador na estrutura estética da comédia gótica, é muito bem realizado. Suas formas tentam criar um equilíbrio entre a quase candura de formas mais circulares dos personagens da franquia “Hotel Transilvânia” com a sisudez mais debochada e longilínea das criação de Tim Burton em “O Estranho Mundo de Jack” e “A Noiva-Cadáver”. A exceção é o Tio Chico, que ficou mais parecido com o Crazy Frog mesmo. Impressiona como não há um descolamento da figura de Gomez com a criação icônica que Raul Julia fez do personagem nas produções de 1991 e 1993. É possível que se não houvesse sua morte precoce no ano seguinte, a franquia teria continuado, dado o sucesso desses filmes à época.
Pois é justamente nesse prólogo mais ligeiro que reside algumas das questões que merecia mais atenção, por não ser uma constante em adaptações de histórias os Addams. A busca por um lar ou um espaço no mundo que possa receber sua forma de vida, é uma construção que fará sentido no ato final mas não é o mote da trajetória dos personagens. Aliás, assim que os filhos do casal entram em cena, com a transição temporal, “A Família Addams” derrapa bem em uma longa cena de ação desenfreada, que exagera em uma fantasia que não se mantém no restante do tempo. Uma aventura sem sentido, eis que não condiz com o que virá depois. Fica a impressão de que tantas explosões e sobressaltos cumpram a mera função de chamar a atenção das crianças, para que elas fixem o olhar no que está por vir. Para os mais velhos, fica o receio de uma animação genérica.
O longa-metragem começa a virar o jogo quando o roteiro tira da cartola uma das melhores antagonistas do cinema norte americano de 2019: Margaux Needler (Allison Janney). Uma apresentadora de televisão que ganha a vida explorando o desejo alheio de reformar suas casas. Um entretenimento assistencialista que toma conta desse meio de comunicação de forma agressiva nos últimos tempos e que já fez o público entender que boa parte de seus responsáveis são lobos em peles de cordeiros. Margaux vê nos Addams uma maneira de aumentar sua audiência explorando toda a excentricidade daquelas pessoas.
Só que Gomez e Mortícia tem coisas mais importantes para se preocuparem. Enquanto tentam fazer um bem sucedido rito de passagem para a adolescência de Feioso em festa que levará outros parentes para a mansão, passam a lidar com a revolta juvenil de Vandinha, que não se contenta mais com a educação não formal, expediente que não lhe permitiu conhecer o mundo fora dos terrenos da família. Há uma trifurcação inteligente após a consolidação dessas tramas, que possibilita um diálogo multidisciplinar que atinge em cheio seu público-alvo.
Os adultos devem se divertir mais com a dinâmica criada por Margaux, uma camada do texto que levantará questões não apenas do mencionado assistencialismo empreendedor quanto da indústria de fake news, o uso de redes sociais e a maneira como as pessoas têm se preocupado com a vida alheia. Já os mais novos podem se identificar com os debates propostos por Vandinha e Feioso. A menina coloca para a fora a tendência outsider dos adolescentes, de serem anti-sistema independente de qual sistema os rege. No caso dela, o afronte se dá para que seja matriculada em uma escola regular e passe a usar qualquer roupa que não seja preta – por mais que até ela prefira isso. O mais importante nas mensagens do filme é que não há uma contraposição parental em seu roteiro. Há maturidade e entendimento, na medida do possível, que permite que os conflitos entre eles se limitem às tentativas de assassinatos entre irmãos – que todos que conhecem os Addams sabe como funciona. Afastar essa formulação básica de choque geracional deu mais qualidade ao texto, uma vez que tornou o produto a ser entregue muito mais desafiador.
Feioso não tem tanto tempo de tela quanto as tramas que partem de Margaux e Vandinha. Todavia, seu dilema talvez seja o mais relevante de toda a obra, complexa naquilo que uma animação infantil se permite ser. A pressão familiar por demonstração de masculinidade, representada por uma boa apresentação com espadas na tal festa, não rende tantas cenas criativas, mas ainda assim se destaca no meio a tantas frentes do texto. O mesmo equilíbrio que os Addams buscam, o roteiro liderado por Matt Lieberman tenta atingir. Fica a curiosidade dos projetos futuros, que envolvem uma animação com Scooby-Doo para 2020 e rumores de outra de Os Jetsons. A Universal conseguiu transportar com eficiência um argumento clássico, adequando esteticamente às outras obras do estúdio – uma conexão visual imperiosa para o nicho infantil. Essa identificação com o público é fundamental para a retomada de uma série que conta com um grupo de personagens cheios de possibilidades.
Há espaço para um segundo susto no desenvolvimento de “A Família Addams”, quando parecia que o tal equilíbrio seria uma desculpa para gerar uma espécie de descaracterização parcial daqueles personagens formidavelmente construídos há quase um século. Porém, se trata de outro joguete dos realizadores, que como bons ilusionistas entregam um lado para surpreender no outro. O ato final mastiga bastante o discurso para os pequenos, em sua tentativa de demonstrar a importância de se preservar a integridade das reputações e isso nos últimos tempos já não incomoda tanto. Mesmo diante de mais uma história que promove tolerância e respeito, a sociedade já nos mostrou que para humanos em formação vale mais uma lição didaticamente exposta na mão do que uma boa intenção má interpretada voando.