A Cidade dos Abismos
Destinos fúnebres que se cruzam
Por Paula Hong
Esta crítica é uma nova perspectiva escrita por Paula Hong. Leia também a parte um! Em “A Cidade dos Abismos”, os diretores Priscyla Bettim e Renato Coelho agrupam pessoas marginalizadas e escancaram suas vivências numa ousadia política sintomática à contemporaneidade que busca por resgatar uma estética precursora de outros modos de fazer cinema. O granulado da película ao mesmo assegura solidez à realidade dura que as personagens melancólicas Glória (Verónica Valenttino), Maya (Sofia Riccardi), Bia (Carolina Castanho) e Kakule (Guylain Mukendi) vivem, e visualmente anuncia o aspecto fantasmagórico e fúnebre de seus destinos entrecruzados por uma tragédia anunciada.
A obra que homenageia Luiz Rosemberg Filho é a mesma que homenageia a cidade abismal de São Paulo — tanto por extensão geográfica quanto pelo contexto sócio-econômico que as personagens vivem —, pois utiliza da postura radical do cineasta para transpor à tela o intenso fluxo metropolitano responsável por entrelaçar em seu centro vidas e espaços esquecidos, uma recurso comum no cinema contemporâneo paulistano. As cores saturadas trabalham menos como um certo encantamento visual, embora algumas cenas se destacam por resultar em tal efeito, mas sim como transes delirantes e memórias surrealistas.
É difícil não deixar de mencionar o quanto “A Cidade dos Abismos” torna-se um filme vagaroso e arrastado pelo aspecto experimental ao claramente abarcar filmografias passadas do cinema brasileiro — como de Mário Peixoto e do Cinema Novo. Há, sim, dramaticidade da perda de Maya, uma das personagens principais, da busca por justiça advinda após a passagem pelo luto, mas não sustenta muito bem a possibilidade de outras vidas marcada pelo tom futurístico do neon presente em toda a obra. De fato, não parece possível tal exercício de possibilidades quando já se espera pessimismo que é fruto da forma como o Brasil trata essas figuras rejeitadas.
No entanto, há de se fazer menção a um dos pontos mais fortes do filme: a não espetacularização dos corpos dessas figuras marginalizadas cujos futuros trágicos são predestinados pela realidade brasileira e que o filme reproduz de forma sensível se comparado com a frieza da estatística que os reduzem a números. A hostilidade que os permeia é tamanha que em certa altura da narrativa, Glória opta por fingir estar em um filme de perseguição policial. Num momento anterior, uma das personagens afirma que “As cidades não existem, só os encontros são reais”, o que expressa não somente desencantamento por um lugar que deveria garantir sua existência, mas também que encontra acalento nos afetos resultantes de uma série de injustiças que os unem, mesmo sabendo que não deveria acontecer dessa forma. Há casos em que a cidade traça a linha do destino dessas pessoas, e não o contrário.
“O amor nos torna imortais. Quem ama não morre jamais”, diz o Padre Júlio Lancellotti. (Sim, Padre Júlio Lancellotti). Esta fala dá certo fôlego na busca pela reescritura de tais destinos. A perda de uma pessoa amada, que torna-se imortal pelo amor e pela memória nos que deixou para trás, serve de combustível para a aliança formada por Glória, Bia e Kakule. Quando estabelece tal aliança, “A Cidade dos Abismos” garante uma trama experimental ancorada por crime, sangue, horror, delírios, surrealismo, sonhos, poesia, música, escancaramento político através dos discursos que as personagens fazem na quebra da quarta parede, mas não garante final feliz. No fim, a vida dessas pessoas vira notícia de morte transmitida pelo jornal que você assiste enquanto janta com sua família.