Curta Paranagua 2024

A Bela e Os Cães

Direitos e "burocracias"

Por Vitor Velloso

A Bela e Os Cães

“A Bela E Os Cães” de Kaouther Ben Hania é um filme desconfortável em cada um dos seus momentos. São nove segmentos, mesmo número de planos sequência que explora uma narrativa que parece estar em constante looping, onde opressões, torturas, deboches e agressões são cometidas sucessivamente contra a mesma personagem. Até aqueles que parecem estar lhe ajudando, mostram suas peçonhas em algum momento. 

“Em que mundo você vive?”, “Querem nos culpar por tudo” ou o silêncio diante das angustiantes sessões de tortura que a protagonista sofre na mão dos policiais.

Está certo que a estrutura capitular de “A Bela E Os Cães” cria alguns momentos de respiro para o espectador, que sem muito tempo para reflexão (na ideia que Kiarostami comentou) acompanha mais uma sequência desnorteante. A ideia por trás dessa forma que “caminha” com Mariam (Mariam Al Ferjani) é sintética na medida em que concentra essa imagem à tomada sem interrupção, criando essa dimensão quase enxuta da estrutura, mas cria uma nova compensação desse espaço, que não se fragmenta para a assimilação possuir um ritmo mais “acessível”. O contínuo cansa, desgasta, desafia o espectador com a sua progressão, não à toa recorre às pequenas pausas, para não expulsar ninguém da sala. A cadência que a diretora, Kaouther Ben Hania, consegue projetar, é de uma consciência da perda de “propósito”, onde o esgarçamento desse tempo leva ao “excesso” de nossa percepção espacial daquele lugar. A delegacia parece um grande campo de concentração, onde a ambiência labiríntica percorre por alguma ajuda. 

Essa construção pode acabar afastando uma boa parte do público, pois não trabalha com a imagem-fetiche que o cinema mais conservador gostaria de explorar e articula em torno de uma base histórica, material, cultural, que incide diretamente na vida da protagonista. O estupro não é apenas normalizado por grande parte dos personagens, como tornam-se alvo de ataques pessoais à Mariam. “Ninguém vai te querer depois disso tudo”, “Você vai matar seu pai do coração quando ele souber”, “Você estava insinuando”, “Também com essa roupa, né?”, “Puta” e por aí vai. Esse último xingamento, em especial, possui um peso de mão dupla. 

“A Bela E Os Cães” é tão cansativo de se assistir, que é difícil sair de uma sessão do filme com alguma sensação positiva. A exaustão é um de seus objetivos e essa perseguição possui um resultado, gostando ou não dele. Algumas imagens podem acabar recebendo o rótulo de “apelativas”, o que não seria um equívoco crasso, mas seria mais honesto partir de uma linha argumentativa que compreenda tais quadros como dispositivos expositivos. Acaba fragilizando uma estrutura que funciona de maneira capitular e percorre os corpos na dilatação do tempo e fluxo desse espaço. Por essa razão, visualizarmos ela estirada no chão, com o celular reproduzindo um vídeo, enquanto os violentadores fitam seu desespero e “perda de força”, não possui uma força basilar, já que a falta de recorte não permite isso. Logo, ao tocar nesse assunto o leitor que já experienciou o projeto, irá lembrar imediatamente dos minutos finais, que são ainda mais expositivos nesse caminho, com um breve gesto que faz tudo se tornar maior. 

Mas essa dimensão parece um pouco deslocada da maior parte, uma espécie de digressão para findar de uma vez por todas aquele momento, ainda que muita coisa tenha de acontecer para que alguma justiça possa ser feita. 

“A Bela E Os Cães” é um filme cansativo, angustiante e revoltante, porém acaba fazendo a escolha da secção capitular de respiro formal, sem conseguir explorar esses intervalos a seu favor, como reflexão ou reforço. Apesar de sua potência, tropeça em algumas ideias promissoras que são interrompidas para criar uma espécie de totem em sua imagem. A dicotomia entre o tempo e espaço de maneira contínua, sempre explorando uma nova face dessa moral distorcida, violenta e misógina que reflete parte de uma cultura que aliada à reforma política, se expande para reflexos ainda mais latentes em conservadorismos outros. 

3 Nota do Crítico 5 1

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