1917
Muitas Novidades no Front
Por Jorge Cruz
A chegada em circuito limitado nos cinemas dos Estados Unidos fez com que pouca gente tenha assistido “1917” antes que o longa-metragem empilhasse indicações na temporada de prêmios. Esse sentimento de azarão ao Oscar revelou-se uma grande estratégia de marketing para a produção dirigida pelo experiente Sam Mendes. Ao contrário de coringas, irlandeses e parasitas cansados depois de meses de discussão, o público teria um novo filme para amar. Ou odiar. Fato é que, provavelmente, os sentimentos surgirão pelos mesmos motivos.
A história se passa no dia 6 de abril de 1917, em meio a Primeira Guerra Mundial. Os soldados Blake (Dean-Charles Chapman) e Schofield (George MacKay) são enviados como uma mensagem para o destacamento adiante, com ordens específicas para suspender um ataque no dia seguinte. Para o primeiro, há o adicional de seu irmão fazer parte do outro grupo. Pela primeira vez, Mendes é creditado como roteirista, ao lado de Krysty Wilson-Cairns. A autora estreia no formato de longa-metragem, após alguns curtas e episódios da finada série “Penny Dreadful”. Como previsto, a história é formatada da maneira mais simples, para que o gigante plano-sequência pensado a partir de tomadas de oito minutos cada possa ser absorvido sem dificuldades pelo espectador. Boa parte do mérito das imagens pode ser creditada ao diretor de fotografia Roger Deakins, que parece nunca sair do auge.
O que mais chama a atenção nos primeiros minutos de “1917” é a maneira como o cinema ianque (dessa vez em parceria com o britânico) insiste em trazer uma limpeza, um asseio estranho a um ambiente como uma trincheira de guerra. Escolha estética feita para mostrar quão puros aqueles homens são dentro da segurança pré-combate. A maneira com a qual Mendes passeia a câmera é quase como se as modernas técnicas de captação de imagens fossem mastigadas para o melhor deleite do cidadão-médio. Há firmeza e foco, ao contrário do ambiente desesperador, tremidamente vibrante de um conflito dessa magnitude. O susto e o choque que possam causar decorrem da valorização da morte a partir da potencialização do sangue – sensação de sujeira feita por contraste. Há um toque de escatologia reverberada com a mesma crueza das obras de Mel Gibson, mas equilibrada a ponto de não perder potenciais fãs do produto.
É quase como se Hollywood tentasse, novamente, manter a linguagem cinematográfica sobre seu controle. “1917” vem sendo celebrado por abordar a I Guerra Mundial (1914-1918), após inúmeras obras que usam como objeto o conflito da II G.G. Todavia, o cinema dos Estados Unidos nunca ignorou o poder das trincheiras. Basta mencionar o primeiro vencedor do Oscar de melhor filme, “Asas” (1927). O diretor William A. Wellman criava, à época, poderosas e inesquecíveis imagens – algumas delas parecem referenciadas na sequência que se passa em um celeiro. Podemos mencionar os aviões de estrutura icônica do período rasgando o céu no horizonte em íngremes subidas e descidas e aquele que seja o momento mais representativo: quando os dois protagonistas se encontram abraçados. Nas poses de Chapman e MacKay em “1917” há uma aparente menção ao clímax de “Asas”, quando Buddy Rogers e Richard Arlen chegam a trocar um beijo. No moralismo estadunidense de 2020 esse momento parece estar fora de cogitação.
Já se pensarmos no vencedor do Oscar de 1931, “Sem Novidades no Front” o filme de Sam Mendes parece atualizar as desgastadas imagens das trincheiras da I Guerra Mundial. O trabalho que Lewis Milestone fez com o livro de Erich M. Remarque o coloca, até hoje, na lista das produções mais espetaculares do gênero. Todavia, estamos falando de um produto com quase um século de vida. Quando pensamos nessas novas maneiras de retratar uma batalha, “1917” encontra-se totalmente alinhado ao seu tempo. A trilha sonora de Thomas Newman, em boa parte da jornada, emula o acompanhamento musical de um jogo de videogame. Acaba que as representações imagéticas seguem o mesmo caminho, eis que a impossibilidade de corte e a necessidade de se inserir na ação aproximam a obra a um console quase em primeira pessoa. O estilo do longa-metragem é bem mais Zack Snyder de “300” (2006) do que Milestone. Newman, aliás, parece seguir o caminho de Deakins de ser um eterno indicado ao Oscar. Enquanto o diretor de fotografia foi premiado apenas em 2018 com “Blade Runner 2049”, o compositor deverá conseguir sua décima quinta indicação, ainda sem troféu.
Quando depende dos diálogos, “1917” é tão sofrível quanto se espera. Há uma tentativa de registrar partes da zona de guerra onde a paisagem não é tão afetada. Como se quisesse dizer que a “civilização” está bem próxima da “barbárie” de um conflito, bastando dobrar a esquina. Falta ali a experiência de quem faz esse cinema, dos realizadores que encontram e distribuem sentimentalismo nessas brechas. Quando depende de todos os elementos técnicos, o longa-metragem é irretocável. Além disso, duas brincadeiras, uma visual e outra narrativa, mexem um pouco com a impressão de mero deleite de um filme pensado por consagrados veteranos como Mendes, Deakins e Newman.
A primeira, visual, é uma imagem que nos remete diretamente ao álbum “Atom Heart Mother” do Pink Floyd, aquele que há uma vaca na capa. Desde aquele, a banda inglesa usaria apenas uma criação imagética como porta de entrada de seus discos, sendo essa a primeira gravação em estéreo do grupo. “1917” dialoga de muitas maneiras com esse produto dos anos 1970. Não apenas pelo impressionante design de som, mas também porque no momento em que o diálogo visual é criado a personagem vivida por George MacKay toma uma absurda decisão envolvendo a vaca. Em mais um subterfúgio narrativo que denota a fragilidade do roteiro, essa atitude de Schofield inaugura uma emulação mais kubrickiana da obra. Stanley Kubrick que queria de qualquer maneira utilizar “Atom Heart Mother” em “Laranja Mecânica” (1971). Quando tem início a “fase noturna” do filme ele é ainda mais impressionante visualmente, fazendo com que a trilha de Thomas Newman abandone o videogame e se torne no clássico épico hollywoodiano tão celebrado.
A segunda, narrativa, se utiliza da participação do ator Andrew Scott. Sua personagem, Tenente Leslie, em determinado momento faz uma mistura de benção com extrema-unção dos protagonistas, que iniciam a missão de entrega de mensagem para outro destacamento. Scott também interpreta um Padre em “Fleabag”, seriado-sensação nos Estados Unidos, que possui uma cena muito parecida.
Voltando à vaca fria (a de “1917”, não a do Pink Floyd) há alguns elementos que podem ser trabalhados com mais calma. O principal deles é o trabalho de construção do tempo. Apesar de ser um plano-sequência de duas horas, o filme não se propõe a retratar em tempo real os acontecimentos. Algumas soluções são bem realizadas, já outras soam um pouco absurdas – como um grupo de soldados que surge magicamente após um momento de crise causada pela falta de proteção dos protagonistas. O fiapo de relação familiar como mola propulsora aproxima o longa-metragem de outro grande destaque do gênero, “O Resgato do Soldado Ryan” (1998). Para os mais novos não tem como destacar a produção de “Dunkirk” (2017). É possível que o revisionismo quase sempre utilizado como argumento para as escolhas da Academia aumentem as chances de honraria para Sam Mendes e sua criação no Oscar. Há quem critique a derrota de Christopher Nolan e sua obra para “A Forma da Água” (2017) e “1917” é quase um primo próximo.
Contudo, não há como não registrar a versatilidade de linguagens utilizada por Sam Mendes. Com apenas sete longas-metragens em vinte anos, ele partiu de um drama que mergulha na neurose e hipocrisia norte americana em “Beleza Americana” (1999) e chega aqui passando pela máfia com “Estrada para a Perdição” (2002), pelas mudanças da vida conjugal dos anos 1950 em “Foi Apenas um Sonho” (2008) e por James Bond. O resultado de “1917” é o puro suco do dito “cinemão” de Hollywood, aquele que evoca sensações com a força do dinheiro, a trilha influenciadora retrabalhada e a linguagem palatável com aquela violência soft. O classicismo do transcendental último ato é a prova de que o estúdio entregou o que de melhor poderia fazer. Por vezes esquecemos que Blake e Schofield estão ali para tentar salvar mil e seiscentas vidas. É tanta riqueza e performance visual, que naturalmente ficamos deslumbrados. Interprete esse deslumbre como quiser.
É possível que essa crítica seja entendida como um elogio ou o apontamento de uma desgastada fórmula para o filme. Ela, sim, serve aos dois pontos. Antes de travar mais uma batalha nas redes sociais sobre a certeza de se amar ou odiar “1917”, pense que os argumentos daquele que contigo discorda por vezes são os mesmos que os seus.