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10 Filmes Para Pensar a Realidade Social do Brasil

10 Filmes Para Pensar a Realidade Social do Brasil

Por Michel Araújo

01 – Ganga Bruta (Humberto Mauro, 1933)

Começando pelo primeiro grande autor do cinema brasileiro, Humberto Mauro, “Ganga Bruta” trata dos temas do matrimônio, feminicídio, patriarcalismo e orgulho masculino. No que pode ser tido como a obra prima do diretor, o protagonista Marcos, descobre na noite de núpcias que sua esposa não era virgem, e portanto, a mata, enfurecido. Posteriormente a violência de Marcos retornará à trama e entenderemos que o feminicídio cometido ao início do filme não é um incidente isolado, mas uma característica intrínseca do orgulho masculino de Marcos.

Se tratando de um filme da década de 1930, as leituras não devem pressupor, é claro, que Mauro já estava há quase um século atrás engajado na mesma forma de militância por direitos humanos e igualdade de gênero que felizmente temos hoje. Contudo, seu ar cru e mesmo pessimista ainda permitia, mesmo naquela época, um olhar negativo sobre diversas injustiças sociais. Para além das reflexões sociais, é interessante perceber no filme (como em toda a filmografia de Humberto Mauro) seu domínio da forma e estilo composicional bem meticuloso na encenação. Seus planos são ricos de uma força simbólica e poesia visual sem perder um ar de bruteza em favor dos temas. Um casamento perfeito de forma e conteúdo, ambos injetados de uma sincera “brasilidade”.   

02 – Rio, 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955)

Dando continuidade para um dos maiores nomes do cinema moderno brasileiro (e do cinema brasileiro como um todo) Nelson Pereira dos Santos, “Rio, 40 Graus” trata das contradições econômicas e sociais num Rio de Janeiro efervescente e caótico. No filme, cinco meninos da favela vendem amendoins pela cidade, e no seu cotidiano se defrontam com as adversidades da estratificação social, oposição de classes, bem como outros dramas que se desenrolam em torno de personagens secundários, que envolvem questões morais e culturais mistas. Um cenário tipicamente metropolitano.

A herança de Nelson Pereira do neorrealismo italiano (movimento cinematográfico que surgiu no pós-Segunda Guerra Mundial, momento de desolação social na Itália) se mostra forte nessa obra que é um dos precursores do que viria a ser o Cinema Novo brasileiro: filmagem em locação ao invés de estúdio e uso de atores não profissionais (que faziam parte da realidade representada no filme), além da minimalização da narrativa, fugindo de uma lógica de espetáculo para se aproximar dos eventos mais sutis que decorrem na vida real.

03 – Porto das Caixas (Paulo César Saraceni, 1962)

Primeiro longa-metragem de um dos diretores mais singulares do Cinema Novo, Paulo César Saraceni, “Porto das Caixas” gira em torno da personagem interpretada por Irma Alvarez, uma dona de casa que sofre constantes abusos e ameaças de seu marido, e planeja, portanto, matá-lo. A falida instituição do casamento, apesar de um tema forte por si só, pode servir, no entanto, de pretexto para pensar uma liberação maior, de qualquer força de opressão. Enquanto a personagem de Irma necessita se conciliar com diversos homens ao seu redor para tentar pôr em prática seu plano de assassinar o marido, todos os demais personagens parecem não ter um direcionamento concreto a seguir, cada qual lidando com suas inseguranças e forças de opressão particulares, mas nenhum tomando as rédeas de suas vidas. O espaço e a encenação vêm em peso para corroborar a poética simbólica da situação da protagonista, em composições extremamente expansivas do espaço rural, por onde ela caminha em busca de seu rumo. As composições picturais ganham ainda mais densidade pelo trabalho do diretor de fotografia Mário Carneiro, grande nome do Cinema Novo, que colaborou extensivamente com Saraceni, bem como Joaquim Pedro de Andrade.

Saraceni é um verdadeiro “cineasta da decadência”, sempre tratando com um ar melancólico e desesperador sobre a falência das instituições (o matrimônio em “Capitu” de 1967, a família em “A Casa Assassinada” de 1970, e mesmo o papel da intelectualidade no Brasil em “O Desafio” de 1965). Diferentemente de “O Desafio” (1965), por exemplo, filme que questiona a posição da intelectualidade artística na representação dos embates sociais, bem como seu impasse ante o vindouro cenário político opressor, “Porto das Caixas” é o único de seus longas realizado anteriormente ao golpe civil-empresarial-militar de 1964, o que se evidencia numa desesperança ainda não tão aprofundada. A personagem de Irma ainda possui direção, ainda busca um norte – por vezes vemos a personagem caminhando em linha reta, enquanto os personagens a sua volta perambulam erraticamente, dispersos.

04 – Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964)

Tratando agora da obra-prima do que é tido como maior cineasta da história do cinema brasileiro, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de Glauber Rocha, trata sobre o campesinato, luta de classes, o papel da religião e do banditismo social – mesmo que preenchidos de contradições – como influências profundas nas estruturas políticas. O tom de barroco épico alegórico é marcadamente episódico, com uma trilha sonora que recita em cânticos os eventos pelos quais passa o protagonista, Manoel, cuja mãe é morta durante uma revolta contra latifundiários, e que parte numa trilha pelo cenário rural brasileiro em busca de alguma forma de emancipação.

Produzido em 1963, e tendo sua primeira exibição em março de 1964, às margens do golpe civil-empresarial-militar, o filme é um marco inaugural do movimento do Cinema Novo, juntamente com “Vidas Secas”(1963), de Nelson Pereira dos Santos, e “Os Fuzis” (1963), com os quais forma a “Tríade de Ouro do Cinema Novo”, ou “Trilogia Rural do Cinema Novo”, sendo os três filmados impregnados pela temática do campesinato e da pobreza e exploração no interior rural brasileiro.

Obra chave para compreensão da primeira fase do Cinema Novo, e compreensão da virada para o cinema moderno que estava se instaurando aos poucos em filmes como os anteriormente citados. Glauber buscava em sua obra um afrontamento da linguagem que assumia a pobreza e a miséria como forma, não apenas como tema mascarado sob uma forma embelezada e tecnicista, que pole a imagem da pobreza e a torna palatável, romântica, e portanto, “domesticada”. As proposições para um cinema verdadeiramente terceiromundista seriam postuladas por Glauber em sua tese-manifesto “Uma Estética da Fome”, que veio a público em julho de 1965 e se tornou uma espécie de guia monumental para compreender as prerrogativas do Cinema Novo.

05 – O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968)

Trabalhando numa chave menos erudita que o Cinema Novo, vêm ao fim da década de 1960 o Cinema Marginal, movimento composto por alguns nomes como Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Andrea Tonacci e Jairo Ferreira. Em “O Bandido da Luz Vermelha” (1968) há uma ruptura ainda maior com estruturas de linguagem palatáveis, tornando a narrativa ainda mais rarefeita. O filme funciona num sistema de “colagem”, não havendo organização de cenas ou sequências num sentido tradicional. O personagem principal, Jorge – inspirado em João Acácio, o verdadeiro “bandido da luz vermelha” – é um criminoso revoltado por sua miséria que entra na vida do crime desde jovem para “extravasar”, como única saída possível ante o cenário social ilógico do terceiro mundo. No cinema de Sganzerla, a mistura de figuras adversas e estratos culturais diferentes é a lei – suas influências mesclam Oswald de Andrade, Orson Welles, Noel Rosa e Jimmi Hendrix. Do samba ao pop, do cinema à televisão e o rádio, não há sectarização entre uma “boa cultura” e “cultura popular”: para Sganzerla – tomando emprestado o título de seu documentário de 1997 – tudo é Brasil.

06 – Crônica de Um Industrial (Luiz Rosemberg Filho, 1978)

Tratando de um cineasta que muito é associado ao Cinema Marginal, embora rejeitasse o título, Luiz Rosemberg Filho foi um autor de obras consideravelmente heterogêneas, e da qual “Crônica de Um Industrial” (1978) é de maior destaque. O filme trata de Gimenez, um ex-militante político que após herdar as empresas do pai se encontra num dilema com seus ideais e cede à pressão das multinacionais para vender as empresas. Assumindo uma dimensão por vezes literária e mesmo romântica, o filme não possui diálogos diretos, mas monólogos, narrativas visuais e experimentações com o corpo na encenação. A temática é tratada sob um viés mais psicológico da personagem do industrial, incorporando profundas reflexões filosóficas sobre contradições ideológicas.   

07 – Cabra Marcado para Morrer (Eduardo Coutinho, 1984)

Tendo tratado até agora apenas de cinema de ficção, é importante ressaltar a pertinência do cinema documentário na sua forma particular de retratar a realidade. E quem melhor para dar esse primeiro passo do que o maior documentarista brasileiro da história, Eduardo Coutinho? Em sua obra-prima “Cabra Marcado Para Morrer” (1984), Coutinho busca recuperar a memória de uma produção cinematográfica de ficção sobre a luta contra os latifundiários chamada “Cabra Marcado Para Morrer” (1964), cuja produção foi interrompida pela chegada da ditadura militar.

Focando principalmente na figura de Elizabeth Teixeira, líder ativista camponesa que desde 1964 vivia clandestina, afastada de sua família. A estilística de Coutinho é de um “documentário participativo”: o diretor aparece em cena, conversando com os sujeitos daquela realidade, se assumindo como ator social tanto quanto as pessoas que visa representar. Não é um documentário ao estilo clássico que esconde seus procedimentos, mas um documentário que se assume enquanto filme e entende que a presença da câmera e do diretor naquele meio social é produtor de uma nova realidade, agenciada pela produção cinematográfica.

08 – Notícias de Uma Guerra Particular (João Moreira Salles, 1999)

Tratando agora de outro documentarista tão importante quanto Coutinho, João Moreira Salles (irmão de Walter Salles) traz em “Notícias de Uma Guerra Particular” entrevistas de sujeitos envolvidos no cotidiano do tráfico do morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, desde moradores civis até jovens que se aliaram ao tráfico. O filme é cru e direto, e mesmo sendo uma produção de atualmente 20 anos, ainda mantém uma atualidade que torna a distância temporal imperceptível. Tendo apenas 57 minutos, o filme consegue imergir o espectador nas alteridades de uma comunidade carioca, com seu próprio jargão, suas convenções sociais, e a acepção da comunidade (bem como de sujeitos externos, como a Polícia Militar) sobre a influência social do tráfico e da guerra às drogas.

09 – Bicho de Sete Cabeças (Laís Bodanzky, 2000)

Falando sobre uma situação social mais específica, “Bicho de Setes Cabeças” fala sobre o tratamento manicomial. Wilson (Othon Bastos) possui uma relação muito rígida com seu filho Neto (Rodrigo Santoro), um jovem de classe média sem compromisso com estudos ou trabalho. No dia que Wilson encontra um cigarro de maconha nos itens de Neto, ele rapidamente o interna num asilo manicomial. O filme – com um misto psicodélico com a trilha sonora composta por Arnaldo Antunes – trata dos abusos físicos e psicológicos do tratamento manicomial no Brasil, e do efetivo agravamento da condição dos pacientes dentro dessas instituições sucateadas.

10 – Por Trás da Linha de Escudos (Marcelo Pedroso, 2016)

Finalizando com um filme mais recente, o documentário “Por Trás da Linha de Escudos” se insere na realidade do batalhão de choque da Polícia Militar de Recife. Realizado na iminência do impeachment de Dilma Roussef, o filme trata da mentalidade da própria Polícia Militar sobre a violência urbana, manifestações populares, sobre a função do batalhão de choque, e sobre o militarismo enquanto organização institucional. Assumindo uma estilística participativa – tal qual Coutinho – o diretor, Marcelo Pedroso, não afronta ou busca refutar a lógica que os entrevistados apresentam, mas apenas os dá espaço de fala em plena integralidade. Contemporâneo, tateando as sensibilidades de nosso atual momento político, o filme permite refletir a polaridade política atualmente em voga.

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