Visões de Ramsés
A gota de ouro
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2022
“Visões de Ramsés”, dirigido por Clément Cogitore, é seu segundo longa-metragem – além de cineasta, Cogitore é artista visual, para usar uma definição genérica, já que transita em vídeo, instalações, fotografias e até óperas. No seu site pessoal é possível conferir a capacidade produtiva desse autor polivalente: no cinema propriamente dito, realizou ainda dois médias. Desta feita, o enredo se passa em uma região parisiense fora do foco habitual do fetiche turístico, conhecida como “Goutte d’Or” – traduzindo literalmente, “gota de ouro”, pelo fato de ter existido ali em tempos passados cultivo de vinho branco. É um local multiétnico, mais de 40 nacionalidades distintas, entre africanos, árabes, chineses, indianos, paquistaneses, e até franceses. Os guias turísticos costumam chamar esse tipo de ambiente de “popular”, ou seja – paisagem com HLMs (habitações de baixa renda criadas a partir da década de 1950), comércios africanos, magrebinos, prostituição, tráfico de drogas, cigarros fake, joias roubadas, celulares contrabandeados e demais contravenções. O personagem-âncora, o vidente Ramsés, circula nessa seara ansioso e alerta, carregando com seu ponto de vista a narrativa do filme e nos inserindo nesse universo.
O ator Karim Leklou, que faz Ramsés, construiu seu personagem entre o charlatanismo desavergonhado e a interioridade assombrada: de certa maneira, ele é o espaço-tempo do filme, tudo passa pelo seu corpo. Um médium, com um certo ar de sonâmbulo, como reza a tradição mediúnica, dotado de estratagemas inconfessáveis para ludibriar, ou melhor, convencer a audiência hipnotizada. Logo na primeira sequência desvela palavras de um recém-falecido para uma viúva agoniada – com ajuda de espelhos e alguma fumaça, mas sobretudo com o litlle help do comparsa na sala ao lado, que hackeia o celular das pobres almas e invade, ó Deus, as divinas redes sociais. Nomes, datas e intimidades são transmitidos ao vidente, que transmuta esse conhecimento em conversa ao pé do ouvido – não há como resistir. “Visões de Ramsés” excele em planos próximos e escuridão, os negócios vão a todo vapor, mas a performance do ator parece indicar que algo está fora do lugar, helás.
Afinal de contas, estamos no “Goutte d’Or” – e um grupo de crianças moradores de rua, imigrantes recém-chegados de Tânger, no Marrocos, invade o apartamento de Ramsés. O vidente investe-se de uma paranoia seletiva, começa a desconfiar que seus concorrentes no bairro – que tradicionalmente dividem a clientela em função da origem étnica – estão em busca de vingança pelo seu sucesso. De fato, o público de Ramsés é um recorte da diversidade da população local: os africanos, oriundos da África subsaariana de colonização francesa – Camarões, Togo, Senegal, Burkina Faso, Chade, República do Congo, Mali, Mauritânia, República Centro Africana – protestam, seus clientes estão migrando para a mediunidade high tech do rival. Numa cena memorável, Ramsés confronta uma assembleia de médiuns revoltados com a monopolização do mercado. Não só africanos, mas também rivais asiáticos e de outras paragens.
Ramsés ignora os apelos, e aqui “Visões de Ramsés” tem seu ponto de virada, um cavalo-de-pau dramático: tudo aquilo, menores ao relento e disputa do mercado espiritual, desperta nele não se sabe como uma consciência social meio desconexa, mas profunda. Dos interiores apertados de rostos e olhares, o filme dá um salto para o exterior – sempre através do corpo do vidente – e passamos, pela janela, aos telhados, aos quintais, aos becos, à luta diária pela sobrevivência nessa zona periférica de Paris. Entra em cena um personagem formidável, o pai de Ramsés, Yunes, encarnado pelo veterano ator argelino Ahmed Benaissa – que faleceu horas antes da estreia do filme no Festival de Cannes, em 2022. Ele de fato é um médium: acolhe surpreendentemente os meninos, harmoniza os conflitos e reinstala a energia no corpo do filho.
E é um outro corpo, de um dos membros do grupo, que jaz morto num imenso canteiro de obras: Ramsés, num instante fulcral para uma audiência de devotos, percebe algo com sua visão periférica – um rápido e certeiro desvio de olhar, méritos do ator – e um corte preciso remete a ação para o canteiro, local do luto. Afinal, até mesmo os charlatões podem dispor de sensibilidade social e afetiva. O social, no caso, é o contracampo do ocultismo: Eu faço pequenos shows, quando as pessoas estão felizes, elas voltam, explica Ramsés, sem meias palavras. Sejam almas quebradas, sejam crianças expostas, todos têm direito à felicidade.