Vida
Gladys e um legado
Por Vitor Velloso
A carreira de Maria Gladys recusa apresentações, mas determinadas interpretações se tornaram imortais na cultura nacional. “Vida” de Paula Gaitán é um documentário que se propõe uma apresentação da artista, história, trajetória e trabalhos específicos, contudo, não propõe uma conjuntura formal que seja didática em sua articulação. Pelo contrário, assume uma característica particular da cineasta, fragmentando as imagens em movimento convexo, recusa a formalidade pedagógica e mercadológica, centraliza Gladys e a liberta de qualquer entrave.
Consciente de sua não representação histórica, o longa se limita à própria protagonista e horizontaliza essa construção a partir de um material de arquivo particularmente cinematográfico que é mapeado pelas falas da atriz. Gladys situa o tempo e a espaço de sua história, Gaitán até se rende em alguns momentos e parece buscar alguma padronagem no modo de concatenar determinadas ideias. E por mais que consiga alguns feitos curiosos em suas “performances” com Gladys, acaba sendo constantemente puxada para a representação da Zona Sul carioca de uma maneira mais crua. Poemas, texto sobre Stella Artois e uma necessidade da libertinagem.
“Vida” se inclina constantemente aos eixos da ciranda e dos saraus dominicais para o deleite de festividades diversas, mas acaba enriquecendo alguns retratos da burguesia carioca e suprimindo uma representação dos subúrbios, gênese cultural e biológica de Gladys. Essa verve de descontínua apenas se alia aos meandros da burguesia que comandam as telonas da cinematografia carioca e nacional, contudo alguns lampejos mais conscientes da linguagem conseguem salvar momentos, que sem determinados artifícios seriam um bocado deselegantes.
Os poemas vão se somando e consigo toda uma carga de atravessamento dessa cultura de determinado status da elite intelectual vai atenuando uma proposição materialista da própria narrativa, uma biografia cultural. E quando a protagonista anuncia aproximações com o debate, o longa não consegue administrar esse brio vulcânico que emana. Esse sentimento de inércia diante da própria construção e criação, acaba sendo a tônica dominante de “Vida”. Que pouco consegue alcançar com o material assumidamente primário, quiçá primitivo, que possui. Diferentemente de “Uaka” ou “É Rocha Rio Negro Leo” que trabalha com a escassez afim de ampliar o próprio espectro e diferenciar-se esteticamente, o longa de 2008 não encontra saídas menos diretas e pragmáticas para os problemas que vê a frente. Ora, tenta transar com as frentes mais didática, ora irrompe de alguns formalismos mais convencionais, em outros tenta encontrar sua frente de atuação em uma ligação mais imediata com o espectador. Porém, a experiência não consegue se consolidar e estagna em um platô de poesias e performances.
As investidas que a montagem realiza para tentar minar alguns escapes dessa história, acabam não funcionando, pois limita o ritmo da obra ao carisma de Gladys, que apesar de imenso, não consegue sustentar o sessenta minutos de projeção. E o gosto se torna excessivamente amargo, pois não vislumbramos nada particularmente digno de nota em toda essa duração, apenas um frustração constante de entrarmos em contato com uma vertente menos midiática da atriz.
“Vida” cai nas próprias armadilhas e em marasmos múltiplos que transformam toda sua construção em um projeto mimético das falas mansas em torno de poesias e Stellas. O tédio é constante e a obra se torna um desafio.
Contudo, deve-se dizer que o paradoxo criado por Gaitán, é particularmente interessante. Ao passo que não vemos nada sobre Gladys, vemos muito sobre Maria Gladys Mello da Silva, que ora parece estar confiante diante da objetiva, ora não. Essa constante mudança atua diretamente em feridas expostas da obra, ou cacoetes na encenação, de ambas as partes. A protagonista recita o mesmo verso, diversas vezes, como quem quer reforçar impacto. Em outros momentos, escutamos Gaitán pedir que a atriz faça algo. Em seguida, ela assume as rédeas da misancene e direciona o quadro e a montagem como bem entende. E talvez seja essa transa de controle que faça “Vida” soar indeciso sobre si e as atitudes que toma.
Alguns momentos é Roberto Carlos, outros Caetano… Uma coisa devemos falar sobre a obra: Gaitán sabe retirar percepções pouco ortodoxas de seus “entrevistados” e nada permanece no campo comum por tanto tempo assim.