Verão de 85
Amor e morte aos dezesseis anos
Por Fabricio Duque
Há quem acredite que é fácil demais traduzir as obras do realizador parisiense François Ozon, devido a sua simplicidade da condução narrativa. Não, não é. Ledo engano. Seu cinema traz uma nostalgia presente e uma mórbida inocência perdida (e ingênua por desconhecer as limitação do não) . Em seu mais recente longa-metragem, “Verão de 85”, selecionado oficialmente à edição não acontecida do Festival de Cannes 2020, baseado no romance juvenil “Dance on My Grave (Dance na minha Cova)“, do autor britânico Aidan Chambers (que escreveu em 1982), evoca a Nouvelle Vague e a cinefilia imagética de François Truffaut, desprovida de certos e errados, como em “Beijos Proibidos” (especialmente por seus travelling); importa a atmosfera dos anos oitenta (com sua fotografia solar de meio de tarde, com músicas típicas de rock inglês e com a liberdade dos comportamentos politicamente incorretos); a paixão que os franceses possuem por indefinições, dúvidas; racionalismo vitimado (e alimentando o ato de sofrer); e a sensação constante de se equilibrar entre a vida e a morte, esta como um “hobby” e o que mais “interessa”. Entre a realidade e a imaginação etérea. E a quebra da quarta-parede (que convida o espectador para ser cúmplice participativo). “Doido, mas não louco”, diz-se. Há quem dirá também que esta obra é mais uma história homoafetiva. Não, de novo.
Ainda que tenha em sua essência o desejo do amor gay (no verão e com trilha sonora de “Sailing”, de Rod Stewart) e a desenvoltura de uma aventura na costa da Normandia (aludindo a “Me Chame Pelo Seu Nome”, de Luca Guadagnino, especialmente por causa de sua fotografia granulada de filme antigo restaurado), “Verão de 85” é sobre amadurecer. Sobre despertar a fertilidade da escrita. A história é auto-roteirizada pela metalinguagem das cenas e pega carona nas máximas de Jean-Claude Carrière, escritor colaborador de do diretor Luis Buñuel, quando fraseia “Porque o roteiro é o sonho de um filme”; por narrações antecipadas da trama (como fragmentos de final relevado – assim nossa atenção aumenta, porque esperamos quando a tragédia acontecerá), como o protagonista Alexis (“fofo, inocente, carinha de anjo e coelhinho”, com seus dezesseis anos, informar que o amigo recém conhecido, David (um internalizado bad boy transgressor, que salva estranhos bonitos de se “afogar no asfalto”), com dezoito, será o “futuro cadáver”; pela intercalação de tempos (o agora e a digressão) e de uma investigação; pela ajuda para salvar “delinquentes” de Assistentes Sociais; por “banheiras que lembram caixões”; e por uma mãe totalmente livre em relação à nudez dos rapazes. Verão de 85” constrói uma tensão-flerte sexual de olhares completamente mitigados de moralismos (deles versus a recondução perceptiva dos outros), por insinuações, ora explícitas, ora afastadas pelo medo da decepção.
O longa-metragem, que integra a edição especial do Festival do Rio no Telecine, quer também a inocência sombria, de obsessão pela morte e seus ritos fúnebres. De se manter no controle, até mesmo no inevitável. “Verão de 85” é sobre o “Para que perder tempo?”, porque “Somos todos mortais”. De viver intensamente o momento. De não mais precisar de motivos para entender o que sente. De se permitir “ficar de cara feia” por ciúmes. De “ajudar um bêbado ou um náufrago que pegou o barco – os dois, uma estupidez”. De diferenciar “rapidez” de “velocidade”. De se divertir no parque à moda do seriado “Stranger Things” com brigas e tudo. De querer “saber o que acontece dentro das portas trancadas”. Se para Alexis, a morte é um natural estudo antropológico, para David, é uma “ausência daquele que amamos”. “Amei o suficiente para conhecer o significado da palavra amor”, verbaliza, entre a leitura completada de uma carta de Verlaine a Rimbaud, entre projeções Shakespearianas a “Romeu e Julieta”, entre a androgenia de se travestir. E “bizarro” pacto prometido de uma dança que viola a lei. E o “começo do fim”. Um gatilho que muda todo o rumo da travessia e gera uma fatal “tempestade”.
“Verão de 85” é sobre “inventar as pessoas que amamos”, que positiva ainda mais seu resultado pelos personagens que transmitem uma química ultra-naturalista entre eles, incluindo seus coadjuvantes, como a mãe de David (que caminha no limite tênue do surreal e do real, e que “sempre foi boa em só ver o que quer” – interpretada pela atriz Valeria Bruni Tedeschi) E sobre seduzir para conquistar. É sobre paixão e morte na adolescência, no melhor estilo de “Morte em Veneza”, de Thomas Mann, levado às telas por Luchino Visconti. A maestria de François Ozon está em sua capacidade de amalgamar referências de tantas obras sem perder o equilíbrio e sem soar cópia, plágio e/ou homenagem. Seu estilo é próprio e facilmente identificável. Talvez seja esse tom narrativamente palatável possa levar às pessoas a ter essa sensação de tradução óbvia. Sim, este filme é tudo isso e ainda mais.