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Vento Seco

Paixões reguladas pela temperatura dos desejos sexuais

Por Fabricio Duque

Durante o Festival de Berlim 2020

Vento Seco

Há filmes que causam sentimentos controversos em alguns críticos. Por um lado, o dever da escrita. Do outro, o querer de preservar o filme da própria análise, com o intuito de não defini-lo, estendendo a liberdade do sentir. É exatamente o que acontece com os filmes do realizador goiano Daniel Nolasco, especialmente em seu mais recente longa-metragem de ficção, “Vento Seco”, exibido no Festival de Berlim 2020 (considerado por este site como o melhor filme de todo o festival), que agora estreia nos cinemas. Esta é uma lisergia orgânica-estética-sadomasoquista, traduzida por um cotidiano natural de tipos rústicos, com barba descuidada, pêlos nas costas e desejos primitivos, que precisam ser mascarados, controlados, subterrâneos, escondidos em submundos e tornados opostos para assim não sofrer com o machismo e a homofobia, preconceitos estes dominados por uma sociedade hipócrita e com bagunçados condicionamentos estruturais. Esses “diferentes”, que preferem “paus” a “pussy”, obrigam-se a se comportar como machos-alfa. Caubóis brutos e “propagadores” do enraizado conservadorismo.

“Vento Seco” é acima de tudo um filme de amor a la “Sr. Raposo”, que precisa aceitar as hostis dificuldades das escolhas (às vezes expressando vulnerabilidades por um pacote de Sucrilhos – uma metáfora ao inocente tesão da infância), entre metáforas férteis, jaquetas de couro, submundos, matas esquecidas de um setor do trabalho e recortes-características-pistas dos filmes anteriores do diretor (como a cena final que remete a “Netuno”), com um que bem mais explícito de cinema de arte pornô, como “Liberté”, de Albert Serra. Aqui, essa brutalidade não acontece pela violência e sim pela cumplicidade-cio romanceada do sexo fetiche-hardcore (com direito a Golden Shower), de onde vem o tesão, o estímulo e o impulso. Daniel Nolasco não busca apenas o tom sexual, pelo contrário, o filme aprofunda a complexidade, muito pela fotografia, com o zoom utilizado sutilmente, que evoca o visual atmosférico da Nouvelle Vague e a trilha de suspense de Alfred Hitchcock. Quem sabe, na verdade, esta obra não seja mesmo sobre uma paixão obsessiva, auto-destruidora, ciumenta, que vive mais na fantasia da imaginação que na própria realidade, à moda de “O Talentoso Ripley”, de Anthony Minghella, e de “O Fantasma”, de João Pedro Rodrigues.

Tudo porque o protagonista Sandro (o ator Leandro Faria Lelo) pode experimentar o que quiser em sua mente. Todos os desejos são permitidos. Todas as transgressões perversões. Todas as submissões “cachorradas”. Ele vive a monotonia na quentura árida de Goiás, entre trabalho, natação e sexo anônimo. Quando Maicon “bagunça” seu mundo, Sandro exige de si se defender no próprio orgulho para não demostrar a fragilidade do gostar (e as “pequenas esmolas de amor” – acreditando inocentemente que o “mundo tem gosto de mel”, a “paixão, gosto de céu” e que é possível “fugir do sol”), comportando-se como um imaturo adolescente (hipnotizado, pensando sobre como se vingar) e assim se apegar ao último resquício da ideia do que é ser um homem-macho (arisco, heteronormativo, que atiça, provoca e volta atrás por “ter alguém vendo”), meio “Brokeback Mountain”, heterossexual e incluído na lista vip-top dos jogos de futebol e das festas vaqueiras ao som de Jorge & Mateus. E que somatiza a frustração e o medo do “povo comentar” na ferida na boca ressecada (o clima seco). Só que a narrativa de “Vento Seco” não busca só isso. Quer mais. Quer evocar também a epifania etérea de “Querelle”, de Rainer Werner Fassbinder. Uma fotografia estética, de poesia visual neon. Há quem diga que a gente só gosta do que a gente sabe que não vai ter e quando o outro quer, a vontade do ter deixa de existir. Às vezes pela festa adulta com tema infantil.

“Vento Seco”, que nos faz lembrar da mitologia planetária e a transitoriedade-analogia do vento que muda a temperatura (“Céu sem nuvens”, “Com nuvens”), é um poema ateu por instintos e vísceras. Um que de thriller almodovariano.  Uma transgressão que rasga a racionalidade e só existe fora do controle. Na loucura projetada. Sandro, por covardia do futuro feliz – assustado pelo “armário” e por iminentes consequências “facadas”, faz de sua vida um eterno carnaval. Encontros líquidos, casuais e intensos. E que, pelo desejo incontrolável, quase com a ninfomania de “Shame”, de Steve McQueen, se entrega a “perigos” (a observação dos outros) de uma felação em público. O filme quer também construir sensações, a música eletrônica-trance, por exemplo. Os close (objetivação sexual dos corpos) em sungas e bundas em um “desfile” na piscina. Tudo é conduzido de forma tão natural, tão cotidiana, tão possível, tão viva, tão coloquial, tão espontânea, tão rítmica, tão cadenciada e com sexo tão explícito (sem pudor algum, bem aos moldes dos filmes de Bruce LaBruce), que até a música “Negue” de Maria Bethânia não soa deslocada no contexto. É sobre a utopia do impossível. Dos desafios. Dos embates. E a obsessão quando chega, gera a ilusão, a impotência e a  perda da razão. “As fobias só se resolvem se você vivê-las”, diz-se, citando os “espelhos” de Oscar Wilde. É por essas e outras que certos filmes devem permanecer livres em nossas mentes. Analisá-los soa quase como uma prisão. “Vento Seco” é muito mais profundo, muito mais complexo, muito mais sexual do que foi escrito aqui. Um filme sobre um tema universal que mesmo em 2021 (no caso em 2020, ano que foi exibido em Berlim) ainda cause desconforto e confusão. Nossa, como somos atrasados, fofoqueiros e julgadores sobre a vida dos outros!

5 Nota do Crítico 5 1

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