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Uma Colônia

Em Busca de Dignidade

Por Jorge Cruz

Mostra de São Paulo 2019

Uma Colônia

Uma Colônia” marca a estreia da diretora e roteirista Geneviève Dulude-De Celles em longas-metragem, uma profissional jovem que merece receber total visibilidade no cinema canadense com urgência. Parte de um primeiro ato que referencia o cinema independente dos Estados Unidos. Até quem sente falta apenas da música alternativa é brindado com uma bonita cena ao som de Love will Tear us Apart, do Joy Division. A princípio somos emocionalmente conectados à Camille (Irlande Côté), uma criança espirituosa que não tem medo de se meter no meio das galinhas do pequeno sítio onde sua família mora. Avançando desse prólogo descobrimos que o filme tem como protagonista sua irmã mais velha, a adolescente Mylia (Emilie Bierre).

Celles redige a carta de apresentação do longa-metragem com as cores mais vibrantes da representatividade feminina, desfilando nos créditos inúmeras realizadoras para as mais diversas funções do projeto. A coerência narrativa e estética ultrapassam as obviedades de obras com essa característica. A temática de “Uma Colônia” o aproxima muito de “Aos Treze”, sucesso improvável da diretora Catherine Hardwicke em 2003. Responsável por dar uma indicação ao Oscar de atriz coadjuvante para Holly Hunter, trazia as experiências vividas pelas adolescentes interpretadas por Nikki Reed (também roteirista) e Evan Rachel Wood em início de carreira. A cineasta teria uma década de franca ascensão, sendo escolhida para dirigir a primeira parte da adaptação da série “Crepúsculo” para os cinemas. Mesmo entregando o sucesso de bilheteria esperado por Hollywood, Hardwicke passou os últimos anos emplacando poucos projetos, na infeliz tradição do cinema de promover o apagamento de realizadoras.

O que Geneviève Dulude-De Celles faz é ir um pouco além. À fidelidade na representação das personagens mulheres se alia uma câmera que em nenhum momento é invasiva, em respeito total aos dramas já vividos internamente por Mylia. Uma maneira de se contar tudo sem a sensação de ofender a privacidade. Quando a protagonista passa mal por conta do exagero na bebida, Celles altera o foco e torna irregular a altura da câmera, afastando a escatologia da cena. O desconforto de uma investida romântica com um garoto na festa da escola é revelado a partir das reações no rosto de Emilie Bierre, sem qualquer objetificação. Sendo assim, a maneira como esse recorte da vida de Mylia é contado nos dá todas as informações necessárias sem exageros que tornassem a experiência de assistir ao filme uma linha tênue entre o divertido e o risco de ser incômodo. Somos agraciados com o mesmo tom introspectivo e observador de sua protagonista. A ideia original é que “Uma Colônia” fosse um documentário, mas a diretora concluiu que os temas ali propostos, vistos sob o olhar da realidade, ultrapassaria o limite da ética.

Antes de “Uma Colônia” ganhar vida, a cineasta produziu mais de uma dezena de projetos, eis que fundadora da Colonelle Films e dirigiu um documentário e dois curtas ficcionais. A não-ficção se chama “Bienvenue à F.L.” e ainda não foi assistido pelo Vertentes, mas retrata a rotina de adolescentes no Ensino Médio, época em que Mylia também se encontra. Já os dois curtas foram conferidos em conjunto com o longa-metragem selecionado para a programação Perspectiva Internacional da 43ª Mostra de Cinema de São Paulo. O primeiro, “The Cut”, vencedor do prêmio no Festival de Sundance em 2014, é um conto muito tocante sobre uma menina que passa o final de semana com o pai e recebe um telefonema com convite para ir a uma festa. Feito em tempo real e em plano-sequência, inaugura a carreira de Celles aproximando a temática da chegada da adolescência e tudo o que isso implica. Tanto que a protagonista do curta também se chama Mylia e a diretora entende os filmes como conectados, de certa maneira. Já “Fuck You, Éric” é uma espécie de parábola feminista de apenas seis minutos, tendo como mote a mesma energia adolescente para ambientar sua história.

Com elenco formado a partir de anúncios em jornais, a equipe de “Uma Colônia” buscou longe dos centros urbanos os perfis ideais para aumentar a sensação de fidelidade da obra. Algo que uma agência de talentos não comportaria, selecionando pessoas que necessariamente teriam que fingir sotaques e comportamentos fora de sua realidade. Por isso, mesmo que não se paute no brilhantismo das interpretações, o filme encontra o tom naturalista necessário para o seu enredo. Todas essas preocupações permitem que os debates mais sociais do filme encontrem amparado na produção de qualidade, muito parecido com o que Lisa Azuelos fez em “Meu Bebê”.

Não apenas de dramas juvenis vive “Uma Colônia”, pelo contrário. Como o título sugere, questões culturais importantes serão atraídas para o centro da trama. Mylie, a adolescente que tenta ser invisível na escola, constrói uma relação de amizade com Jimmy (Jacob Whiteduck-Lavoie), descendente do povo originário Abenaki. Sua forma de lidar com o preconceito dos colegas faz com que a protagonista repense toda essa necessidade de anulação que ela acredita possuir. É interessante como o roteiro não se priva de tirar de pedestais qualquer pessoa ali representada. Mesmo sensibilizados e nos colocando ao lado de Mylie e Jimmy somos obrigados a condenar xenofobias e machismos perpetrados pelos dois em determinados momentos.

Entendendo que a tática do adolescente é chocar e o desejo de ofensa supera qualquer bom senso que eles possuem, “Uma Colônia” nos vende vários perdões por conta das boas intenções daqueles humanos imperfeitos. Há uma ligeira abordagem sobre a ausência da referência masculina a partir do pai vivido por Robin Aubert. Porém, não há espaço para outra ampliação no leque de questões, deixando certas pontas soltas. A educação cívica escolar que se baseia na visão colonialista dos povos indígenas consegue ter força a partir de uma cena na sala de aula bem forte com Jimmy se negando a ouvir a leitura de trechos do livro de História. Uma saída inteligente para que esse arco pudesse ser fechado com mais eficiência.

Na construção metafórica de que não somos obrigados a pintar os desenhos respeitando as linhas que o traçam, “Uma Colônia” se socorre da metade em diante a uma narrativa mais clássica, criando sequências que isolam pontos como o auto-flagelo adolescente, a sororidade feminina e a carência afetiva dos irmãos mais novos para fazer valer suas teses. Uma obra que se faz respeitável em muitos aspectos, mesmo que o empilhamento de assuntos não permita um aprofundamento dos pontos focais. Só que “Coringa” também faz isso e muita gente eleva a obra a um clássico instantâneo. Resta saber se Geneviève Dulude-De Celles, uma cineasta que parece já ter encontrado seu estilo, conseguirá avançar em sua carreira. Fica a curiosidade e a torcida para que ela permaneça no radar de grandes festivais e mostras.

 

3 Nota do Crítico 5 1

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