Festival Curta Campos do Jordao

Um Silêncio

O desejo é o desejo do outro

Por João Lanari Bo

Festival de San Sebastian 2023

Um Silêncio

Um Silêncio” – o título do longa que Joachim Lafosse dirigiu em 2023 remete, sem dúvida, ao silêncio de Astrid (Emmanuelle Devos, excelente), esposa do advogado François Schaar: durante um quarto de século ela manteve-se calada face aos descalabros do desejo do marido, pedófilo contumaz. Desejo que, inevitavelmente, espraiou-se pelas entranhas familiares, como um veneno que penetra na circulação e desencadeia a coagulação do sangue. Baseado em fatos verídicos, e utilizando nomes fictícios – na vida real Schaar chama-se Victor Hissel – a narrativa se passa entre 2008 e 2009, a partir da detenção de Hissel, acusado de possuir imagens de pornografia infantil.

Não fiz um filme para chocar, disse Lafosse – e a economia das imagens confirma o propósito, praticamente não há imagens gráficas, como define o vernáculo popular. Trata-se de um filme seco, que evita julgar os personagens, que procura os espaços intermediários entre eles sem tomar posições pré-concebidas. De acordo com o diretor, cinco ou seis atores foram chamados para o papel principal, mas se negaram a fazê-lo – é um tipo de personagem que não dá prémios, é muito controverso, racionalizou. Apenas o indefectível Daniel Auteuil topou a empreitada: e o método que utilizou para construir o advogado perverso/familiar parece ter se valido de uma introjeção amorfa da culpa, no sentido de uma culpa que não se cristaliza.

Se alguém tem essa capacidade no cinema francês, pelo status que carrega e pela saturação da sua presença nas telas, é Auteuil. Pois a contradição que Schaar/Hissel ostenta não é pouca coisa: Victor Hissel tornou-se nos anos 90 uma personalidade midiática na Bélgica, a partir da desaparição e morte de duas crianças, de 8 e 9 anos, encontradas no jardim de um dos mais famosos molestadores de crianças da história, Marc Dutroux. Cumprindo pena perpetua, Dutroux violentou e matou pelo menos seis crianças (o número total de vítimas permanece desconhecido). E mais, se é que é possível: ele supostamente fazia parte de uma rede que incluía personalidades importantes, políticos e magistrados, que nunca foram processadas. Hissel entrou em cena como advogado das vítimas de Dutroux, e logo tornou-se figura nacional no combate à pedofilia.

Em “Um Silêncio” a mídia está presente full time, na porta da propriedade de Schaar/Hissel. É o olhar do outro, o olhar da sociedade, que persegue e envaidece nosso advogado paladino. Em suas declarações, ele não hesita em estigmatizar os malfeitores anônimos do sistema, de modo excessivo e descalibrado e, no final das contas, sujeito a críticas. Em março de 1998, alegando ser vítima de pressões, decide abandonar a defesa formal das crianças, embora continue na “luta cívica”, promovendo passeatas, por exemplo – uma delas chegou a reunir 400 mil seguidores, em Bruxelas. A decisão pegou os admiradores de surpresa: hoje sabemos que a motivação estava em outro lugar, no desejo do desejo do outro que habitava a psique de Schaar/Hissel.

Em 18 de fevereiro de 2008, sua casa foi revistada. Acusado de posse de imagens de pornografia infantil, o advogado admite os fatos, alegando ter sido abusado na infância e passado por tratamentos desde então. A investigação revelou que foram em torno de 7.700 imagens acessadas no seu computador, entre 2005 e 2008. O desejo de Marc Dutroux interiorizou-se em Victor Hissel? Trata-se de um caso clínico, que desafiou os juristas: ele insiste que não cometeu nenhum delito, se considera fora do âmbito da lei, na medida em que apenas visualizou o conteúdo dos sites, sem pagar por downloads ou impressão – pela legislação em vigor naqueles anos, funcionou.

Um dos méritos de “Um Silêncio” é tratar todos esses sobressaltos com um minimalismo naturalista, sem pieguices ou picos dramáticos. A culpa de Schaar/Hissel não se cristaliza, ele não se assusta com a descida aos infernos que se avizinha em sua vida. Tal como o veneno, entretanto, o desejo do desejo do outro do advogado infiltrou-se no filho de 20 anos, estimulando um parricídio – e completando, pelo menos simbolicamente, o círculo vicioso do desejo de Dutroux. À época, o jovem disse à polícia ter descoberto uma revista de pornografia infantil no escritório do pai, quando tinha 7 anos, em 1997. E também DVDs.

Em 2010, Victor Hissel foi condenado a dez meses de prisão pelo tribunal de Liège, Bélgica, por “posse de imagens de pornografia infantil”. Chegou a apresentar recurso no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, afinal negado. Divorciado, continua residindo em Liège.

3 Nota do Crítico 5 1

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