Um Lindo Dia Na Vizinhança
Deixa a Marionete Acreditar
Por Jorge Cruz
Fred Rogers (Tom Hanks, que pode ser indicado ao Oscar novamente após quase vinte anos – ele foi ignorando por obras como “Capitão Phillips“, por exemplo) era uma espécie de mistura de Ana Maria Baga, Bia Bedran e algum religioso menos agressivo. Seu programa foi produzido por mais de três décadas nos Estados Unidos e formou gerações de espectadores com uma linguagem educativa muito semelhante ao que a TV Cultura faz no Brasil. Um típico cidadão de seu país, que alia o sucesso profissional com o bom mocismo de um longo casamento e a quase unanimidade de carinho do público. Hanks sempre foi um pouco Fred Rogers em sua carreira que completa em 2020 quarenta anos. Talvez por isso é provável que boa parte da plateia de “Um Lindo Dia na Vizinhança” assista aos primeiros minutos do filme preocupada em mergulhar no personagem.
O que os jovens roteiristas Micah Fitzerman-Blue e Noah Harpster encontram como solução para tirar a estrela de Hollywood do pedestal é gastar quase o primeiro ato inteiro formatando a obra como se fosse uma edição do programa do biografado. Uma saída inteligente para nos apresentar a composição do ator e que consegue introduzir na história o verdadeiro protagonista, Lloyd (Matthew Rhys, que trabalhou com Hanks em “The Post: A Guerra Secreta“, mas é mais conhecido pela série “The Americans“). Partindo de sua problemática relação com o pai Jerry (Chris Cooper), “Um Lindo Dia na Vizinhança” é daquelas biografias onde conhecemos melhor o elemento ficcional do “biografante” do que o biografado.
A direção de Marielle Heller não foge do embate acerca disso. Ela compõe boa parte das sequências como se estivéssemos diante de um palco para uma grande performance de Tom Hanks. Só que essa áurea de plenitude dos astros da televisão, que intimida quem chega perto, quase sempre recebe a contribuição do próprio. Se pensarmos nos expoentes da área aqui no Brasil chegaremos à conclusão de que com o passar dos anos um personagem vai sendo moldado, de Silvio Santos a Luciano Huck, passando por Rodrigo Faro. Em Rogers a prisão interna por ele criada é o do homem polido, sempre disposto a palavras gentis e carregadas de mensagens motivacionais soft. Conforme “Um Lindo Dia na Vizinhança” vai avançado fica claro que a demonstração de interesse do apresentador lhe serve mais para confirmar sua grandeza, sua superioridade moral em seu território. Dessa maneira, mesmo sem se comportar como o “senhor da razão”, o apresentador consegue conduzir todas as ações, mantendo sob sua rédea quem se aproxima dele. Como o jornalista está ali para colher informações para uma reportagem, Fred o trata como um fantoche muito esperto, com uma falsa autonomia que deixa a marionete acreditar que comanda alguma coisa.
A questão é que há muito pouco a ser dito quando entendemos que o magnetismo do apresentador permitirá que ele atue mais como psicólogo do que objeto da matéria de Lloyd. O roteiro e a direção brincam com isso, mostrando características de Fred quase de maneira acidental, como o vegetarianismo, o hábito de nadar todos e os dias e – na cena mais bonita do longa-metragem, justamente a última sequência – seu talento como pianista. Como não há interesse em se desmistificar, naturalmente ele perde espaço para os dramas mais corriqueiros pelo qual passa o jornalista. Seu sentimento de culpa por ter brigado com o pai e a tentativa de conciliar a vida profissional com o casamento à beira de uma crise chamam mais a atenção do que as cansativas canções e apresentações de fantoches que ele precisa assistir.
Talvez por ser a segunda biografia de pessoas ligadas à cultura e entretenimento de alguma maneira, um padrão parece começar a se estabelecer nas obras dirigidas por Marielle Heller. Em “Poderia me Perdoar?” a protagonista Lee Israel (Melissa McCarthy) bem que tentava omitir e falsear seu temperamento – algo que o Fred Rogers de Hanks consegue com um pé nas costas. A escritora gostava de praticar pequenas vinganças, aguardando o melhor momento para revelar seus instintos primitivos – algo que o tamanho da carreira do apresentador não permite. Portanto, como se tratam de duas personas que carregam certa sobriedade independente da profundidade do problema enfrentado. Heller então parece absorver na narrativa essa prática, abdicando de arrebatamentos típicos de filmes do gênero para costurar dramas mais expositivos. Se por um lado torna menos prazeroso o ato de assisti-lo, por outro torna inegável a sensação de que estamos diante de uma obra muito mais fiel aos comportamentos humanos.