Um Céu Tão Nublado
Epígrafe de um velho olhar
Por Vitor Velloso
Durante o Olhar de Cinema 2021
“Um Céu Tão Nublado”, exibido no Olhar de Cinema de Curitiba, é um filme que recebeu particular atenção na Mostra Competitiva. O documentário de Álvaro F. Pulpeiro parte da epígrafe de “Nostromo” de Joseph Conrad para dar título à obra. Nesse caminho, é possível enxergar um desejo de suspender parte da realidade da Venezuela à objetiva que vai se esgueirando no que a sinopse divulgada pelo festival chama de “algumas Venezuelas possíveis”. Ou seja, não é propriamente um documentário sobre o país, mas uma série de olhares distintos na multiplicidade cultural, política e econômica de um transe latino-americano que vai se expondo, ou sendo exposto, ao longo da projeção.
Existe um certo tom fatalista aqui, construído por uma série de construções imagéticas que arquitetam um conflito entre os sonhos e uma destruição. Essas questões são apresentadas por diálogos entre personagens, realidades distintas, sons de rádio que falam do cerco criado pelo Trump, respostas do Maduro etc. Não há como negar que algumas imagens em “Um Céu Tão Nublado” são bonitas, e que diversos deslocamentos propostos como fragmentos tentam dar uma totalidade que oferece ao imaginário individual uma interpretação particular, mas tudo isso é parte de fetiche plástico. Quando algumas comparações com obras do Herzog surgem, em especial “Fata Morgana” (1971), esse fetiche se fortalece no imaginário da imagem em si, uma certa poesia fragmentada naquilo que a imagem é capaz de sintetizar. Porém, o longa de Pulpeiro acaba incorrendo a uma certa inocuidade nessa tentativa da pluralidade, de estruturas em decadência e submundos. A intencionalidade da falta de contextualização é reforçar que dentro desses recortes, existe uma cultura que vai sendo descoberta, desvelada e compreendida. É realmente um olhar estrangeiro, como o diretor define a obra de Conrad (durante a entrevista com Carla Italiano), mas que acaba mantendo um certo exotismo fatalista da realidade.
Apesar da estranheza provocada por certas tomadas, quase todas noturnas, a obra está focada em alavancar um tom apocalíptico dessa realidade. Não se trata propriamente de uma fuga, mas de uma intimidade conturbada. Se somos capazes de machucar aqueles que amamos, “Um Céu Tão Nublado” parece uma declaração de amor fatalista. Como expressão disso, fica claro que um diagnóstico está longe de ser a intenção, o debate é um oferecimento exterior à obra em si. E é onde alguns problemas começam a aparecer. Quanto mais avançamos na projeção, mais a transa das imagens mostra a grandiosidade do céu nublado atravessado pela verticalização do capital, estrangeiro ou não, em relação direta com os indivíduos que ali residem. Discutindo o preço da gasolina ou expondo o ganha pão na beira da estrada, esse material ganha uma proposta ficcional na maneira como a montagem articula essas “realidades internas”. Essa versão de “Tristes Trópicos” com imagens estonteantes, revela esse caráter exótico, uma objetiva que procura estetizar seus momentos.
Por mais que alguns espectadores possam ficar encantados com alguns planos, dificilmente irão se distanciar dos debates em torno da imagem e de outras aproximações acadêmicas. Contudo, os maiores méritos de “Um Céu Tão Nublado” estão na maneira com que essas imagens são apresentadas e não seus significados. Essa aposta da luz, do fatalismo e de um cenário apocalíptico da geopolítica internacional, que retoma as dificuldades financeiras antes anunciadas, em parte, pelas sanções norte-americanas, não são necessariamente conservadoras, mas revelam esse esteticismo primário aliado ao fetiche do olhar estrangeiro. Pouco elucidativo, tampouco provocativo, o documentário acaba se tornando uma grande vitrine de nossa dependência, do mundo engolindo a cultura popular e de um futuro incerto. Mas a forma é tão distante e asséptica que pouca poesia sobrevive nessa epígrafe cíclica de como a América Latina é diversa. Acaba sendo uma síntese visual de como poderiam nos olhar e não de como somos. Não por acaso, quando na sinopse diz que: “Ciente de que não será capaz de mudar isso, nem muito menos explicar ou condensar uma situação tão complexa…dessa vida coletiva que parece escapar à compreensão.”, fica claro que existe um conformismo fatalista dessa formalidade.