Quem tem medo do Tunga?
Por Vitor Velloso
Além dos inúmeros adjetivos que podemos utilizar para tentar descrever Tunga, existe um amigo que é capaz de realizar o curioso processo de musealização e admissão da incompreensão do mesmo. Engraçado observar a necessidade de homenagear o artista, já que o filme estava sendo produzido antes de seu falecimento, e despedir-se dele é um ato…mais complexo que parece.
Miguel de Almeida, diretor do filme, “Tunga: o Esquecimento das Paixões”, revela já no título parte de seu processo criativo. A obra em si já nasce como uma intensa deformidade formal. Apesar da grosseria da palavra, é uma questão bastante positiva que se toma em primeiro lugar, pois, a forma fílmica não é necessariamente o meio à atingir algo específico, ela de fato representa parte de seu assunto, não apenas de maneira intrínseca, mas assumidamente a única coisa em si possível. Ainda que as possibilidades dos dispositivos cinematográficos pudessem carregar a produção à outro lugar, o diretor mantém-se fiel a personalidade múltipla de seu personagem e da complexidade que é incorporada a partir da afirmação de que “Tunga era uma obra de arte em si”, desta maneira, torna o longa parte dessa questão filosófica, absorvendo as criações como parte de sintetizar a quintessência do inexplicável. E esta é a beleza de seu filme, ele não tenta concretizar uma imagem específica de Tunga, nem mesmo denotar um didatismo para que a acessibilidade torne-se uma variante do documentário, apenas um fluxo que flexibiliza a compreensão do espectador à obra do próprio Tunga.
Assim, ao tratarmos da linguagem que Miguel utiliza aqui, não podemos partir de um ponto de vista puramente cinematográfico, nem afetivo, mas de uma construção bastante própria, flertando com uma abordagem clássica, ensaística e de vídeo-arte, por vezes durante a projeção é possível imaginar a obra sendo exibida em museus e exposições, e esta intencionalidade híbrida que se compõe parte da produção enriquece gradualmente nossa percepção após o fim da exibição. Não à toa, iria escrever sobre algumas questões que não torna agradável por completo aquilo que assistimos, mas… não faz sentido. Ao iniciar o texto dei-me conta da importância do material que temos. Ao flexibilizar meios diferentes de criação e exibição, somos capazes de definir algumas diferenças entre as mesmas, além de expor algumas similaridades muitas vezes renegadas pelos radicais de ambas as partes. A tarefa de classificar e avaliar o projeto é um sacrifício tremendo e aqui torna-se uma dificuldade maior, já que estamos trabalhando com algo que não se define por completo.
O enfrentamento estético proposto aqui, não é necessariamente de natureza estilística, está acima disso. E muito menos original, já que atravessamos esses sincretismos artísticos há mais de quarenta anos, porém, em “Tunga: o Esquecimento das Paixões” não é uma vaidade ou um recurso que se utiliza à frente de problemáticas extra estéticas e filosóficas, mas uma impossibilidade imagética de abarcar um universo que não pode ser trancafiado por limitações mínimas. O ecrã deixa de ser um campo experimental e torna-se a consolidação do tempo que o tempo tem e da forma que Tunga tem. A soltura estrutural que se vê é parte da equação insolúvel levantada à anos pelo artista. É curioso escutar no início que a luz é parte primordial (de ordem primitiva) das criações humanas, ou mesma da vida dos que a compõe, pois a mesma é o fragmento que torna o cinema possível. A contemporaneidade jamais poderá ser abarcada em síntese ou reflexão, a dimensão que se tem é de uma volatilidade que escapa até os mais otimistas, mas ela pode ser minimamente representada neste documentário.
Ainda que algumas questões possam incomodar em primeiro contato, como a qualidade da finalização de alguns recursos formais, exemplo os letreiros que surgem na tela, ou a compreensão de alguns diálogos, não é possível afirmar a natureza destes “equívocos”, pois não há parâmetros cabíveis em determinados filmes. E assim, Tunga permanece bagunçando o cenário cultural ainda que em pós vida. A importância deste longa no cenário cinematográfico atual é imensurável, mas é o suficiente para que possamos refletir sobre os rumos e vícios que o mesmo vem tomando para si como forma única de produção. Na ausência das palavras, que as imagens nos carregue.