Festival Curta Campos do Jordao

Três Tigres Tristes

Três jovens em conflito

Por Pedro Sales

Festival de Berlim 2022

Três Tigres Tristes

A pandemia de Covid-19, além de ter vitimado milhões de pessoas, deixou um legado de impactos sociais, ressignificando as relações pessoais e até mesmo as de trabalho. Hoje, reuniões online ou homeoffice são conceitos bem assimilados por todos. Ao mesmo tempo que os cuidados com a saúde e a proteção contra o vírus deixaram muitos neuróticos e quase hipocondríacos. É neste contexto que se desenvolve “Três Tigres Tristes”, uma realidade bastante próxima da que vivemos, pessoas usando máscaras e tomando banho de álcool, mas com algumas particularidades e espaço para o fantástico. A primeira diferença é a potência da nova cepa, a qual afeta diretamente a memória dos infectados. Para o diretor Gustavo Vinagre, a pandemia é um meio e não o fim de seu filme. O fato de inseri-la no longa aproxima bastante o espectador da diegese proposta. A obra satiriza, em alguns momentos, a forma como a sociedade brasileira tratou o vírus. Um influenciador faz um vídeo sobre a nova onda, cheio de efeitos, no TikTok; entre os serviços essenciais, está o pet-shop; e um homem usa uma bolha como vestimenta para manter-se ileso.

Isabella (Isabella Pereira) e Pedro (Pedro Ribeiro) vivem juntos em uma quitinete na grande São Paulo. Ela tenta decorar fórmulas para realizar o Enem, enquanto ele ganha seu dinheiro na frente da webcam com shows privativos e eróticos, carregados de sadomasoquismo. Para Bella, não é problema, eles se dão bem, só os gemidos que, às vezes, passam do limite. O terceiro felino chega ao recinto depois. Jonata (Jonata Vieira) é sobrinho de Pedro, apesar de os dois aparentarem ter a mesma idade. Sua vinda para a cidade é motivada por problemas de saúde, mas nada do novo vírus, um outro, mais antigo. Assim se encontram os três tigres tristes. O longa se propõe a examinar os conflitos da juventude no meio do caos instaurado pela pandemia, a tristeza e a singularidade do que aflige cada um. A direção explora as revelações gradual e sutilmente, quando, conforme os laços se desenvolvem, o trio se sente mais confortável para compartilhar seus sofrimentos.

Um problema comum a todos é o dinheiro. O “capetalismo”, como diz Bella, força as pessoas a ocuparem lugares que não querem pelo simples motivo de ter que sobreviver. A vida de modelo nas câmeras de Pedro surge após um trauma, a perda de seu namorado, que antes o amparava. Neste momento, o filme delineia discussões sobre a depressão no contexto pandêmico e o enfrentamento do luto. O conflito de Isabella é deixar a cidade, entrar na faculdade e a luta (eterna) pela prosperidade, para chegar ao seu sonho de ser uma madame com “voz rouca de cigarro e pele queimada de sol”. Dos problemas mais graves, Jonata enfrenta a AIDS. Para evitar comentários em sua cidade, ele transfere o tratamento para São Paulo. Ser soropositivo é lidar com preconceitos e com o distanciamento de quem é ignorante acerca da transmissibilidade da doença.

Os personagens são claramente marginalizados à luz de uma sociedade dita “tradicional”. Em primeiro lugar, pelo poder aquisitivo. Em segundo, por todos serem parte da comunidade LGBTQIA+. Isabella é trans, e os dois garotos são gays. Um acerto de “Três Tigres Tristes” é não usar dessa característica do trio para a tragédia ou fatalismo. Eles simplesmente são eles, sem medo de homofobia ou da impossibilidade do amor. Dessa forma, existe uma leveza nas relações e, sobretudo, o claro orgulho de ser LGBTQIA+. Com a representatividade, cria-se o senso de pertencimento, a ponto de gírias como “bafo” ou “Brazil, I’m devastated” não soarem deslocadas na realidade que foram inseridas. Além desses aspectos, há uma valorização da cultura Drag, seja nas performances fantástico-musicais ou mesmo no ensejo de Jonata de se montar e dar vida a sua drag-queen, Joana Dá.

Um importante elemento da obra é o esquecimento. Este é a principal sequela do vírus. As pessoas se esquecem de momentos que viveram segundos atrás. A trilha, por sua vez, explora essa desorientação com sons digitais, provenientes de sintetizadores, e a câmera força o zoom para o realce dramático. Quando Pedro vai a um antiquário entregar uma de suas pinturas à dona da loja, as noções de esquecimento e memória passam para o surrealista. A senhora é capaz de sentir os objetos, pois todos têm memórias e guardam suas histórias. O tom transita do humor ao drama, quando ela “sente” a arte de Pedro, em que está o próprio com seu ex-namorado. Esta cena marca o último traço do realismo. A obra desanda, de maneira abrupta, para a fantasia e surrealismo em números musicais e performances queer subversivas dignas de John Waters. É tudo muito alegórico, uma forma de enfrentamento dos medos e realização dos desejos. Entretanto, a variação tonal não possui sutileza alguma. São cenas potentes, com um bom uso da câmera na mão, mas que impactam mais pelo caráter repentino do que pelo conteúdo em si. É como se o próprio espectador ficasse desorientado.

“Três Tigres Tristes” reflete os conflitos da juventude no contexto pandêmico, em que, além de tentar sobreviver a um vírus, devem lidar com trabalho, dinheiro e paixões. A direção de Gustavo Vinagre encontra realismo e também irreverência, como a aparição impagável de uma grande subcelebridade da internet. Nos momentos musicais, flerta com o burlesco na enigmática cantora careca ou com o surreal no encontro de Jonata com seu passado. O único problema é essa mudança que, particularmente, interferiu na minha experiência com a obra. Contudo, esse detalhe em nada altera a capacidade do filme em registrar com bastante segurança e leveza a representatividade LGBTQIA+, o que garantiu ao longa o Teddy Award no Festival de Berlim de 2022. A obra é consciente do seu caráter distópico e por vezes fantasiosos, mas nem por isso se abstém de provocar reflexões sobre os efeitos da pandemia na vida de todos.

2 Nota do Crítico 5 1

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