Tre Piani
Simplicidade desarmante
Por Pedro Mesquita
Festival de Cannes 2021
O mais novo filme de Nanni Moretti nos desarma pela sua simplicidade. “Tre Piani” apresenta exatamente aquilo que o seu título italiano sugere: três andares de um prédio, situado na capital, Roma. Em cada um deles, habita uma família. Em cada uma delas, vemos desenrolar um drama que colocará à prova a sua capacidade de permanecer junta. O filme desenvolve as três histórias em paralelo. Por vezes as personagens de um andar interagem com as do outro — devido à proximidade —, mas cada um desses andares é um núcleo narrativo independente.
Um dos andares é ocupado por Lucio (Riccardo Scamarcio) e Sara (Elena Lietti), pais da menina Francesca (Chiara Abalsamo), que os dois suspeitam ter sido vítima de abuso sexual. O outro é ocupado por Dora (Margherita Buy) e Vittorio (o próprio Nanni Moretti), um casal de juízes que vê o filho — ironicamente — tornar-se um criminoso. O último, por fim, é ocupado por Monica (Alba Rohrwacher), uma jovem que dá a luz no começo do filme, tornando-se mãe, mas raramente conta com a presença do marido (Adriano Giannini), quase sempre ausente devido ao trabalho.
Aqueles acostumados com a obra pregressa de Moretti poderão se surpreender com a sua presença apenas marginal em cena. Em verdade, é importante começar destacando que “Tre Piani” se difere absolutamente das obras mais antigas do diretor (aquelas filmadas sobretudo nas décadas de 1980 e 1990), das quais a fortuna crítica é muito extensa. Nesses filmes — e aqui podemos citar como exemplo “Bianca” (1984), “Caro Diário” (1993) ou “Aprile” (1998) — a diegese se revelava ao espectador sob um ponto de vista muito particular: Moretti é o protagonista desses filmes, interpretando muitas vezes uma versão (apenas levemente ficcional) de si mesmo. A combinação ator/diretor (ou, mais especificamente, protagonista/diretor) rendia um tal efeito que o mundo do filme era sentido através da persona Nanni Moretti. Esses são filmes formalmente muito distintos — assisti-los é verdadeiramente assistir a um filme de Nanni Moretti — e trabalham conscientemente em prol desse caráter distinto. Em suma, são filmes de inclinação moderna.
Em “Tre Piani”, identificamos intenções muito diferentes: as características levantadas acima não lhe cabem. A presença de Moretti como ator acontece, de fato, mas apenas marginalmente, como um mero coadjuvante num filme cuja narrativa não é dada a partir do ponto de vista de uma personagem em particular: o filme alterna de núcleo em núcleo, sem que haja um protagonismo efetivo de uma personagem com relação às demais. Ademais, a linguagem do filme tampouco resulta num estilo particular: se aqueles filmes nos eram reconhecíveis pela marca do autor, este recusa as imagens subjetivas; a mise en scène aqui se caracteriza por uma plenitude — para não dizer uma palavra proibida, “objetividade” — com que se passeia pelos cenários e personagens. A câmera harmoniza com o drama de um tal modo que se torna “transparente”, refletindo com clareza a matéria filmada sem chamar atenção para si mesma. Em suma, há aqui algo de clássico, que muito contrasta com o moderno de outrora.
Uma objeção possível ao filme poderia se basear no seu aspecto demasiadamente familiar. “Tre Piani” joga com segurança as regras do melodrama, lançando mão de clichês ao bel-prazer (a personagem de Denise Tantucci é um bom exemplo disso; sabemos exatamente qual será a sua função na história no momento em que é introduzida). Mas um aspecto louvável da direção de Moretti é que ele parece não se importar com nada disso: “Tre Piani” não é uma obra autoconsciente, daquelas que constituem um comentário sobre si mesma, que desejam problematizar os lugares-comuns do gênero etc… nada disso. Por mais desgastado que seja o tropo em questão, Moretti o encena como se ele acontecesse pela primeira vez; como se ele fosse uma verdade absoluta. Daí a força dramática que o filme carrega, independente do seu aspecto clichê ou previsível.
Da mesma forma, pode-se objetar que a narrativa do filme se apoia excessivamente em coincidências ou situações exageradas. O que essas críticas querem dizer, em resumo, é que o filme não possui realismo o suficiente. Mas não seria esse realismo uma cobrança indevida do espectador a um filme que nunca o tomou como objetivo? A estrutura elíptica da obra — o filme conta com dois saltos temporais de cinco anos, ou seja, percorre uma década na vida das personagens — naturalmente favorece a preferência por eventos extraordinários em detrimento dos ordinários; afinal, o filme precisa andar, e ele o faz rápido. O ritmo acelerado, porém, não dilui o impacto dos seus momentos mais intensos; a experiência de Moretti parece tê-lo conduzido a um estilo despojado, mas pungente.
“Tre Piani” poderá frustrar as expectativas de quem espera ver nele o Nanni Moretti de outrora. Por outro lado, quem souber assisti-lo à maneira de uma tabula rasa, sem julgamentos a priori pesando sobre a experiência da obra, poderá encontrar um belo filme.