Travessia
Paralelismo e burocracias
Por Vitor Velloso
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“Travessia” compõe mais um capítulo da aproximação do cinema brasileiro com um arquétipo de gênero. É semi-antítese preconizada de “Olho e a Faca” de Paulo Sacramento. Uma espécie de prefácio da articulação do operário contemporâneo em meio ao social, um na corporação petroleira, outro na desnudada base dos conflitos morais familiares.
Roberto (Chico Diaz) caminha pela marginalidade dos holofotes, frequenta o submundo, é alcoólatra, agride prostitutas, possui um abismo entre ele e seu filho. Júlio (Caio Castro) caminha de forma paralela no submundo, mas o frequenta como integrante do esquema, é traficante, negocia a venda de drogas em baladas dos filhos da burguesia, de uma autocracia inerente pelo capital e para o prazer.
A proposta de compor as duas realidades em tempos e espaços diferentes, para que a moral, ou a falta de, seja ponto de convergência é interessante. É claro que o projeto familiar aqui, se contrapõe a falta do Estado, e completa incompetência do mesmo, vide impunidade dos sujeitos. O desenho final acaba soando conturbado por dar ao acaso o aval de punição e pena prematura de ações desesperadas. Soa mais uma crítica de responsabilidade individual que propriamente uma ausência de presença familiar e amparo psicológico. Isso tudo é costurado por uma falta de velocidade na Justiça, que problematiza constantemente a divisão de bens que irá compor as duas realidades.
João Gabriel, que assina a direção, a partir da narrativa, esbarra em três problemáticas: 1) A funcionalidade narrativa 2) Uma alusão à juventude desesperançada com a burocracia que busca saída no exterior, através da desistência 3) Um ataque às instituições. As questões possuem resoluções complexas, que o filme de Paulo Sacramento, anteriormente citado, acaba resolvendo dois destes problemas com certa facilidade. E pra pauta da montagem paralela, “O Som ao Redor” seria um bom exemplo. O ponto é que “Travessia” acaba patinando em todas estas, com resoluções que não conseguem conceber a pauta política inerente à história e a linguagem cinematográfica que resolveria parte dela.
1) A construção Narrativa acaba se perdendo por completo em um excesso de histórias paralelas, onde o eixo pai-filho que seria um complexo maior para todo o esqueleto, vira segundo plano. Ou seja, a própria relação Estado x Família x Família-Família, acaba virando um monótono arquétipo de perguntas dúbias que o longa se faz. E a junção que ocorre próximo ao fim, não dá conta de relacionar essas divergências, sendo um desenho pouco pragmático do drama, o que transforma em um projeto de antítese político-cultural, mas aproximação formal com “O lugar onde tudo termina” (2012).
2) Essa alusão à juventude desesperançada é uma tônica da realidade, onde a fuga se torna a saída mais fácil e rápida dos problemas da sociedade. Algo que vemos ao nosso redor, assim como a atitude do pai com o filho em “O Olho e a Faca”. O desenho aqui não é equivocado, mas parte de duas bases de difícil digestão: trata-se de um jovem com poder aquisitivo relativo-médio, através do mundo das drogas burguesas. E parte de uma base política de escatologia ao aprisionamento da cidade e da burocracia judiciária com luta de bens.
Logo, ainda que a exposição não seja turva, a forma e a resolução se tornam pouco eficientes por não compreenderem a razão de suas vias, o que transforma determinados pontos dramáticos em verdadeiras muletas, o romance ali construído (que possui um eixo de moralismo no debate responsabilidade individual x coletiva) e as sucessivas cenas de sexo e uso de drogas, para tentar aproximar aquilo tudo da realidade burguesa. Além de apoiar uma exposição dramática em outras relações familiares, de cunho unilateral ao poder do capital.
3) Realiza um ataque paulatino as instituições do Estado, seja por sua ineficiência ou por sua burocracia. Creditando parte do problema à demora do poder judiciário nos problemas de seus protagonistas. A família em luta interna, com interferências do Estado. Ora, que o interesse privado, individual, é interferido pela constituição “universal”, é uma exposição do óbvio, que requer um arcabouço maior para que se constitua crítica do mesmo. Logo, a problemática se torna outra muleta, que acaba dialogando diretamente com questões conservadoras, onde a individualidade deveria ser mantida, fora dos aparatos do Estado. Correto ou não, o pensamento aqui se torna vitrine para um jogo de formalidades.
E isso tudo vira ponto de interferência por conta de um jogo formal que concebe sempre seus indivíduos partes de um quadro que nunca se insere naquela cidade. O escopo narrativo impõe a cidade como parte real dessa história, mas não inclui a mesma como ruído na montagem, apenas em trechos isolados, ou no fundo do quadro, pois o plano médio e o primeiro plano é a vertente a ser seguida.
“Travessia” é um ode à essas histórias individuais em meio social e por isso não se permite repensar a forma, para que a integração cidade x sujeito x família, seja incorporada à discussão. Acaba virando uma colcha de retalhos de histórias paralelas e um desenho de discussão bastante fragmentado para que algo seja firmado.