Transamazônia
Quem ganha com tudo isso?
Por Vitor Velloso
Festival do Rio 2024
Ao estabelecer a Amazônia como palco para a narrativa, existem projetos que visam debater questões estruturais de uma cultura estabelecida pela ideologia capitalista no país; existem projetos que procuram refletir acerca de resquícios da colonização; outros vão enxergar uma possibilidade de construir uma crítica acerca do desmatamento e da exploração da Amazônia. O filme de Pia Marais, “Transamazônia”, tenta fazer isso tudo.
A ambição não é tão grande quanto parece. Aliás, todas essas questões vão se entrelaçando em uma estrutura narrativa relativamente simples, mas conduzida de forma conturbada e bastante questionável do ponto de vista de sua perspectiva crítica e moral. Um dos maiores problemas aqui é que a coprodução França, Alemanha, Suíça, Taiwan e Brasil parece muito pouco um filme brasileiro e pouco interessada nas nuances dos fenômenos ali expostos, desde o desmatamento até a construção do antro neopentecostal anglófono na Amazônia brasileira. O motivo? Talvez não haja interesse na particularidade do problema, apenas em uma exposição quase exótica dessa história e de seus desdobramentos. O resultado é um filme que carece de uma motivação sincera para desenvolver os dramas ali presentes, tornando tudo excessivamente maniqueísta, em que todos apenas cumprem um propósito para que vejamos essa estrutura neopentecostal que vocifera legendas ao público brasileiro e simplifica um complexo plano em desenvolvimento na cultura nacional, que afeta uma série de camadas da população e possui impactos severos em diversos âmbitos, incluindo o eleitoral. Aliás, “Transamazônia” toca inúmeros temas politicamente importantes, desde a construção dessa grande “comunidade imaginada” até os debates contemporâneos, mas trata todos eles com um distanciamento preocupante. O espectador parece um alienígena arremessado em uma história que vai abarcando personagens e conflitos com a mesma facilidade com que apresenta a protagonista Rebecca Byrne (Helena Zengel) e seu pai, Lawrence Byrne (Jeremy Xido), em uma cena descontextualizada.
É curioso como o filme parece ter um profundo desinteresse pela situação concreta do território que expõe; pelo contrário, utiliza esse contexto apenas como um grande pano de fundo para que os personagens possam dialogar sobre suas crises internas, coexistirem em um certo clima de hostilidade que só é esclarecido pelas atuações, em especial a de Sabine Timoteo, que interpreta Denise. A personagem de Rômulo Braga parece funcionar em outra rotação, assim como boa parte do projeto, que não se encontra em meio às ligações temáticas evidentes, geográficas por obviedade e políticas por mera conveniência.
Não é possível, ou pelo menos não é correto, elucubrar sobre as intenções de um projeto como “Transamazônia”, mas pode-se questionar o efeito que ele provoca. Entre tantas narrativas com forte presença de um white savior, desse “salvador branco” que resolve os imbróglios e questões das histórias, soa bastante ingênua, para dizer o mínimo, a forma como a narrativa desenvolve a participação de nossos personagens anglófonos em um trópico tão marcado por conflitos territoriais, religiosos, políticos, econômicos, sociais, sanitários etc. O efeito é devastador: os dramas exteriores aos protagonistas são meros artifícios dramáticos que os rodeiam; a base das discussões que estão ao redor é deixada de lado para que possamos seguir acompanhando um estranhíssimo coming of age, para manter a língua de Rebecca.
Assim, mesmo que com algumas boas intenções possíveis, o enviesamento de toda essa perspectiva histórica e narrativa, por estar tão centralizado de forma quase uniforme e unilateral, transforma o projeto em uma espécie de proto-paródia não intencional daquilo que jura estar fazendo crítica. Aliás, este é um problema relativamente recorrente em determinados filmes recentes, que creem debater certos temas, procurando novos (ou velhos) prismas para “complexificar” esse retrato, quando não possuem ideias elaboradas de como desenvolver isso, apenas a ideologia de um “novo recorte”.
O maior problema de “Transamazônia” está na forma como exotiza o território, seus conflitos e sua materialidade concreta, esvaziando qualquer possibilidade minimamente consistente de debate. O filme entrega ao espectador um conjunto de retalhos narrativos que se aglomeram de maneira dispersa, acumulando ideias que não pretende desenvolver e deixando arestas que comprometem a experiência. A fotografia, assinada por Mathieu de Montgrand, é tão óbvia quanto previsível, insistindo na representação da umidade constante que “assola” a região, como se esse recurso fosse suficiente para conferir densidade ao espaço retratado. E, mesmo com a montagem por vezes interessante de Matthieu Laclau e Yann-Shan Tsai, as escolhas formais não conseguem organizar esse material de modo coerente, fazendo com que o projeto pareça permanentemente fora de eixo.


