Todo Tempo Que Temos
O amor em tempos naturalistas
Por Fabricio Duque
A filosofia-tese-máxima popular já internacionalizou a ideia de que só há um amor verdadeiro por vida. Apenas uma “alma gêmea” para chamar de nossa. É o Maktub da paixão. De que quem encontramos já está definido em outras vidas passadas. Isso tem que acontecer. É um comando. Uma missão pragmática dos céus. Esse “ser ofertado” vem para nos complementar e acalentar nossas angústias, numa intensiva troca mútua de ajudas, carinhos e amor incondicional, sem hesitações desses sentimentos entregues e sem a necessidade-querer de “diversificar” essa paixão com alternativas e casuais “puladas de cerca”. É a emoção mais completa. Sim, só que no mundo de hoje, ultra facilitado, nós nunca sabemos se a pessoa escolhida é realmente a certa. Esse “Maktub” é tão “influente” que para acontecer altera bastante o fluxo normal dos acontecimentos, simula o acaso e a coincidência. Um desses mecanismos é pela finitude e sua consequência, que é a pressa como elemento condutor da felicidade. Assim, quando não se tem mais períodos estendidos da existência-vida, então esse amor precisa acontecer logo, como um súbito, uma intensidade da plenitude por causa de sua data de validade E é nesse contexto que alguns filmes do gênero romance pautam suas histórias: na última paixão de pacientes terminais de saúde. O caso da vez é “Todo Tempo que Temos”, de John Crowley (de “Brooklyn” e “O Pintassilgo“).
Entretanto, “Todo Tempo que Temos” traz um diferencial definidor e dominante em sua narrativa: a condução de seu diretor, que imprime aqui uma atmosfera bem mais típica irlandesa (bem mais direta), sem apelar a sentimentalismos, a gatilhos comuns e a manipulações das emoções do público. Ainda que seja um filme romântico, o que sentimos aqui é o tom coloquial do cotidiano e seu humor natural, ora genuíno do social, ora idiossincrático do indivíduo, ora surreal-constrangedor da própria vida. Essa condução, sóbria e ficcionalmente mais realista, busca construir um ritmo do próprio tempo encenado, em que o plot mórbido está na iminência da chegada do fim. Mas vamos por partes!
Como disse, “Todo Tempo que Temos” segue a narrativa de cotidiano, acompanhada, de vez em quando, por músicas incidentais, e quase sempre pelo silêncio como pano de fundo nos diálogos. Isso fornece ainda mais uma aura de coloquialidade naturalizada. Essa condução se apresenta de forma fragmentada, em elipses temporais, intercalando passados, pretéritos perfeitos e presentes. E inevitavelmente causa gatilhos (projeções do ficcional no real) sentimentais, de afetividade subjetiva, o público que assiste ao filme, esta audiência que foi “doutrinada” desde os primórdios do mundo a procurar o “complemento” da realização pessoal no artifício idealizado do amor perfeito. Isso faz com que esses filmes, estilo “A Culpa é das Estrelas” em versão adulta, estimulem ainda mais nossas buscas-faltas como se essas paixões fossem “projetos” com prazo a serem vividos sem a “pressão” do “amor para vida inteira”. É, talvez a problematização seja mesmo o amar por muito tempo, que causa o cansaço e que depois de ter, nosso cérebro recomeça com ideias de querer novidades.
“Todo Tempo que Temos” poderia ser um filme tóxico, mas consegue se salvar pelo tom mais pungente de realidade injetada. Aqui é apresentado o desenvolvimento, em tempos intercalados, de uma relação amoroso, o meio, o antes, o depois e todas as suas consequências de quereres projetados: a gravidez, a saúde perfeita, as faltas deixadas pelo trabalho, as personalidades dissonantes de cada um e as reviravoltas tramais. E talvez muito ajudado pelo química de seus atores: Andrew Garfield e Florence Pugh. Sim, “Todo Tempo que Temos” poderia também cair no piegas, no drama exagerado, mas o diretor, por sua bagagem, consegue dosar emoção mais sentimental e necessidade do real, para assim equilibrar a experiência da ficção. Aqui a morte é vista como uma consequência natural, que causa sofrimento, mas com discernimento suficiente para separar o vitimismo medroso do morrer do impulso genuíno do viver, numa “questão de qualidade em vez de quantidade” e num protocolo de fazer “dias vividos perfeitos”. O longa-metragem também se diferencia pelo tom naturalista, idiossincrático e prático da narrativa: a nudez, o sexo crítico como evento, a cena do parto em uma loja de conveniência, e o humor mais de alívio cômico, por exemplo. É acaso e sorte no melhor estilo de Woody Allen. Talvez o universo precise ajudar enviando um atropelamento, não é mesmo? Depois disso, estamos de novo despertando gatilhos: um “E se?” e um “Eu quero tudo isso e toda essa conexão que eles têm!”, à deriva desse Maktub todo.
“Todo Tempo que Temos” consegue incorporar tudo e agradar gregos e troianos. Público e crítica. Há um que de vida acontecendo à la Bergman e Almodóvar, há drama, comédia, sugestões referenciais a atmosferas dos filmes “Amizade Colorida” e “Um Lugar Chamado Notting Hill”, competição Master Chef, sim, e tudo isso pela construção não afoita do tempo, “até que a heteronormatividade os separe” e o corte de cabelo (sem o melodrama diabético de Camila na novela “Laços de Família”). Em uma cena, o filme cria a metafísica ao observar a personagem observando as ações corriqueiros de seu redor. Ainda que em determinados momentos, “Todo Tempo que Temos” traga algumas apelações maiores ao melodrama, mesmo assim, é um ótimo exemplar desse tipo de gênero. Aqui, esse terminal é continuado e existe na essência subjetiva da vida que o casal protagonista teve, sentiu e escolheu levar de forma mais fluída e sem excessos.