Curta Paranagua 2024

Titane

"In Transgression We Trust"

Por Ciro Araujo

Festival de Cannes 2021

Titane

“Titane”, novo longa-metragem da diretora Julia Ducournau chegou abalando Cannes e levou logo a Palma de Ouro para casa. Casa aquela que não ficava muito distante, visto a nacionalidade do filme e a tradição do Festival de premiar as pratas originárias. Bem, de qualquer maneira, a cineasta foi a segunda mulher que levou o prêmio na história por um filme que procura não apenas impactar, mas absorver o conceito de fabricação do amor e redistribuí-lo de forma mais democrática. E nesse meio tempo também encontrar um pouco de gore, seguindo a aparente tendência – e muito provavelmente que vai além disso, um desejo da realizadora francesa – de sua obra anterior, “Raw”.

A trajetória ou evolução do cinema, se analisada, acompanha lado a lado à indústria automobilística. Ambos nasceram em época quase igual e se tornaram populares, por seus diferentes motivos. Eis que se cruzam, numa extensão tecnológica uma da outra para servirem como dispositivos complementares. O cinema norte-americano simplesmente suga toda essa atmosfera. É impossível falar sobre o longa francês de Julia sem se lembrar automaticamente de “Crash”, do canadense David Cronenberg. E é claro, faz-se lógica, pois. Carros e sexo, o tesão por uma pulsão mecânica. E logo quando um filme sobre o automóvel começa a entrar… Ele se desfaz. O segundo horror (que permeia muito mais como um thriller, suspense) da diretora é dividido em dois momentos, quase duas obras separadas, mas que dão como sequência. Cada uma possui clara exposição do roteiro e seus três atos bem montados. Enquanto inicialmente o flerte é com o psicológico, o segundo é um drama.

E eis o erro de “Titane”. Ducournau desde seu longa-metragem anterior parece se interessar por imagens, de preferência que impactam. Esse talvez seja seu modus-operandis, enquanto monta as cenas individuais. A partir de um conjunto, seu maior problema se revela: ser o suficiente. Isto é, quando a trama recebe uma reviravolta em sua estrutura, ela passa a gerir de uma forma diferente, um fluxo que cortou justamente o vínculo anterior formado. Assim, o mecânico, uma vez inspirado pela obra de Cronenberg, agora apenas pincela através do tempo fílmico. Graxas, metais, são os DNAs que continuam por ali perto. Tudo vazio, tudo inflado por um segundo que não existe mais.

Seu segundo segmento propõe falar sobre o amor, uma criação quase dela. Paralelamente, forma-se outra narrativa anglófona, “Frankenstein”. O mito de um corpo criado para servir à uma função, um mestre subordinado. Não tem como discordar, nos ambientes ao redor das críticas do filme francês o que se viu muito é a concordância: acerta-se bem no ordinário. E de fato, o brilho da obra de Julia recai bem na química apresentada pelo personagem de Vincent Lindon. Aqui, o que mais se subtrai são toques suaves de uma relação de masculinidade, tanto entre pai e filho (e logo filha) e a relação com o corpo de bombeiros. Uma decisão, por sinal, também acuradíssima. Juntar um monte de bombeiros, homens, dentro de um quartel, cheios de tesão e entregar logo a confusão mental sobre a sensualidade do além de ser mulher. Mas, de qualquer forma, essa alma interessada simplesmente foge para bem longe. Suas cenas mágicas possuem um impacto ilógico e explícito que confundem a ressonância do filme. Uma maquiagem que quer gritar “transgressivo” no fundo não é nada transgressivo. Nada que possui realmente essa vontade é, afinal. Isso vem de dentro, como uma força da natureza. Não é ensaiada, algo que na diretora já é previamente possível de observar a quilômetros de distância.

O que torna “Titane” como cabível ao fascínio é ainda um progredir de “Raw” também. Sim, ambos possuem uma essência similar que parece que as prendem de ir além, mas em caráter ambíguo, o mais recente precisa da existência do anterior para conseguir fazer uma conclusão a respeito da carne. Porém, agora, adiciona-se o ferro e o amor para conseguirem mais. Novamente, a magia que impõe como desejo de aproximação do horror depena o filme, enquanto ele urge pela delicadeza que a diretora se intromete. A dinâmica, no fim das contas, é de muito mais um embate entre a imagem singular e a coletiva. Julia Ducournau pode ter apenas mirado em uma e acertado na outra. O júri especializado contando com Spike Lee e Kleber Mendonça ajudam neste caso a selecionarem a imagem (supostamente) transgredida e os críticos franceses, bairristas de sempre, vão lá garantir um troféu para a casa.

3 Nota do Crítico 5 1

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