Tia Virgínia
Nossa família de cada dia
Por Fabricio Duque
Festival CineBH 2023
Se tem algo que o cinema pode proporcionar, especialmente aos realizadores de filmes, é a possibilidade de expôr vidas próximas (da mesma família). Isso serve como uma terapia cognitiva “ajuste de contas” de tudo o que já se viveu e que se teve que aguentar. Todos os bullying com “cara de crítica construtiva” e atravessamentos psicológicos. Muitas mães, pais, avós e primos já foram transportados à tela grande, mas são as tias que ganham de lavada, gerando muito “conteúdo” ao teatro, à filosofia, à literatura e à psicanálise, que depois chega aos cinemas. O exemplo de exposed da vez, bem à moda do realismo russo de Anton Tchekhov, e argumentando autoproteção com o artifício da ficção, é o novo filme “Tia Virgínia”, do diretor Fabio Meira (de “As Irenes”), que desenterra as tretas do passado de sua família.
É incrível como há filmes que só podem ter suas análises escritas em determinadas épocas. “Tia Virgínia” é um deles, visto que é preciso um remember de alguma data socialmente comemorativa. É que nosso cérebro “esquece” certos sentimentos gerados em reuniões de família, porque cada ente próximo sempre fará um comentário inoportuno e/ou preconceituoso e/ou maldoso mesmo. Então, escrevo estas linhas em 25 de dezembro, em pleno Natal, pós-acontecimentos da ceia. Sim, é quase impossível fugir desses jantares. Mas tudo isso pode se tornar um aprofundado trabalho antropológico, de observacional terapia de choque às entranhas comportamentais dos seres que habitam a família de cada um de nós.
Sim, essa é a característica essencial (sua maestria) dos filmes do mineiro Fabio Meira, que consegue realizar uma necropsia emocional das relações humanas, imbuídas de todas as influências do outro e de todos os egoísmos latentes. Ao criar uma imersiva, psicológica e fabular mise-en-scène (numa narrativa limítrofe entre metafísica sensorial e fantasia realista), o realizador apresenta uma atmosfera de hipocrisia à lá Luis Buñuel e seu “O Discreto Charme da Burguesia”, e/ou o curta-metragem “Seams”, de Karim Aïnouz, e/ou a já clássica referência neste gênero, “Festa de Família”, do dinamarquês Thomas Vinterberg. Porque sim, é assim mesmo. Ao olhar para minha família, percebi que é criado uma aura de distanciamento de sonho acordado. É como se estivéssemos fora de nossos corpos absorvendo as reações das pessoas-tipos ao nosso redor (quase arquétipos genuínos de nosso núcleo).
No meu “mundinho” (que visito uma vez por ano) há a tia dramática (que propaga todas as desgraças), há a tia comilona (que acaba com a rabanada e com o próprio arroz de passas que leva – porque sabe que ninguém gosta da mistura), há a tia que conta façanha (muitas apenas imaginárias), há a tia arrogante e com superioridade de rica (mas que compra tudo nos mercados populares). É, cada família tem suas “figuras” e parece que é quase universal. A impressão que se tem é que todas foram criadas na mesma forma. Para elas, já faz parte da própria existência alimentar suas manias, suas idiossincrasias, suas famas, seus orgulhos e nunca suas fraquezas-vulnerabilidades. “Tia Virgínia” possui tudo isso. Uma visão ficcional e de contemplação alterada do sobrinho Fabio com muitas tias. Suas memórias representam suas percepções. De como guardou cada uma delas. Dos segredos descobertos, das mentiras coletadas na época e inevitavelmente da predileção entre essas tias abordadas.
Aqui, a trama desenvolve-se por situações coloquiais, filmando o detalhismo pelo etéreo, transformando objetos em personagens. O relógio de parede. Os bibelôs. O quarto separado da casa. E as tão protegidas taças de vinho. Em “Tia Virgínia”, tudo serve como um processo de mais e mais se libertar das lembranças físicas, das submissões arraigadas e das prisões sentimental rumo à transcendência e ao minimalismo do existir. Especialmente à personagem vivida pela atriz Vera Holtz. Céu, Purgatório, Inferno e Céu novamente, praticamente o ciclo metafórico de toda e qualquer existência. Ao zerar quereres antigos e impostos, ela ganha uma nova vida, talvez até em um plano diferente, onde poderá caminhar sem destino, sem cobranças, sem ligamentos sociais.
Cada um neste filme só sabe existir desse jeito, não conseguindo ressignificar o verdadeiro significado da palavra Família, que vem do latim e quer dizer “escravo doméstico; conjunto dos escravos pertencentes e dependentes de um chefe ou senhor”. Sim, “Tia Virgínia” é sobre isso: sobre relações sociais hierarquizadas em que uma delas “recebe” a lucidez (e a coragem para surtar e adentrar na catarse pública) para cortar os elos, as ofensas, as acusações, as correntes invisíveis e as “bombas” colocadas antes mesmo da sobremesa ser servida. “Tia Virgínia” é um retrato de toda e qualquer família e que aqui reuniu um time de peso de atrizes que “disputaram” melhores atuações. Ao lado de Vera Holtz, Arlete Salles e Louise Cardoso.