The Velvet Underground
Quando o Underground sobe o Olimpo
Por João Lanari Bo
“The Velvet Underground”, o documentário que Todd Haynes compilou sobre o mítico grupo dos 60’s, foi elaborado em cima de uma linguagem que exorbitou de vez as confortáveis regras gramaticais do gênero, que localizam no centro da narrativa o sujeito do conhecimento e seu objeto de saber. A barra de salvação é a vaga cronologia dos eventos, que reassegura o espectador atônito de que, afinal, trata-se de um documentário sobre a ascensão e queda de uma banda sui generis de rock. A prodigalidade dos dispositivos utilizados – fotos, tapes, filmes, inscrições, grafittis, rostos, corpos, granulações, hesitações, acordes, timbres, tonalidades – tornam a imagem uma superfície permanente de tensão, um campo ideológico de micropoderes que se anulam e se reproduzem. Se antes havia um sujeito narrador mais ou menos nos contando a “verdade” sobre o que está acontecendo, nesse novo sistema as regras e seus padrões relacionados de conhecimento confiável começam a desintegrar-se em um número cada vez maior de diferentes fragmentos epistêmicos – cada um alegando conhecimento da verdade. A velocidade com que isso ocorre e o grande volume de pequenas histórias que são narradas nos fragmentos batem de frente com a nossa capacidade cerebral, acostumada com taxas e variedade de informações mais reduzidas. Dessa colisão nasce o prazer do texto, ou, como diz a canção:
It was a pleasure then
Could you just be here again
To know what there was to see
When all the sunday people
Where so quiet in the dark
Afraid to be better the next day
O rock and roll, como se sabe, é uma construção mitológica: enraizado no blues, explodiu nos 50’s e globalizou-se nos 60’s. Os astros do rock comportam-se como se habitassem no Olimpo, uma montanha de massa imponente que serve de pouso para deuses, com linhas sóbrias e puras, o pico mais alto de todos aqueles que margeiam os horizontes recortados da Hélade, a Grécia clássica. Quando o dia amanhece, os primeiros raios de sol atingem o cume desta montanha sagrada; quando a luz do entardecer surge como um sinal, a carruagem de prata da noite iluminada pela lua configura a silhueta da morada divina. É mais ou menos dessa forma que músicos de sucesso e as respectivas entourages se veem, ungidos pela indústria cultural que promove e intensifica a circulação do capital. Assistir a um concerto de rock em um grande estádio é uma experiência transbordante, diz a mitologia roqueira: a escuridão enche os vales, ventos furiosos agitam as árvores, relâmpagos ziguezagueiam na chuva torrencial e trovões ribombam nos desfiladeiros profundos. Quem sacou toda essa narrativa de forma brilhante foi Andy Warhol, um dos principais personagens de “The Velvet Underground”, o artista das serigrafias e pinturas aparentemente simplórias e brutais – sexo, morte, crime, celebridade, mídia, dinheiro, produção em massa – espelho da América, como dizem os críticos. Com sua aparência altamente construída e gestualidade, digamos, obtusa, Warhol produziu-se como inserção midiática pop, extrapolando os limites da “arte” – e adentrando novos territórios, cinema, por exemplo. Inventar e apadrinhar um excêntrico grupo de rock veio na sequência: sua banana-capa do primeiro disco é um ícone da pop art, assim como a ideia de introduzir a modelo/atriz/cantora Nico na banda. Uma de suas canções favoritas diz:
I’ll be your mirror
Reflect what you are, in case you don’t know
I’ll be the wind, the rain and the sunset
The light on your door to show that you’re home
When you think the night has seen your mind
That inside you’re twisted and unkind
Let me stand to show that you are blind
Please put down your hands
‘Cause I see you
O contraponto dessa epifania, autor da maioria das músicas, igualmente brilhante, é Lou Reed, sempre de jaqueta de couro – ele podia usar a jaqueta como uma arma, disse a viúva Laurie Anderson, ou simplesmente tirá-la. Suas letras não julgaram os drogados, sadomasoquistas ou garotos de rua: como um semideus forjado no Olimpo artificial de Andy Warhol, ele estava tentando entrar em suas cabeças, captando o páthos e evitando o moralismo. Pura poesia. A estreita relação de trabalho entre Reed e Warhol durou apenas 18 meses, suficientes para fazer com que fossem vistos pelos conservadores de plantão como agentes da depravação e decadência da vida americana – drogas, homossexualidade e comportamentos desviantes de todos os tipos. “The Velvet Underground” é o registro dessa jornada épica.