Tenho Vinte Anos
A porta de Ilitch
Por João Lanari Bo
“Tenho Vinte Anos”, de Marlen Khútsiev, começou a ser rodado em 1961: problemas com a censura, nos diversos níveis em que esse instrumento restritivo se apresentava na antiga União Soviética, retardaram o seu lançamento por quase quatro anos. Hoje, é considerado um dos melhores filmes, senão o melhor, da chamada Primavera soviética. Stalin morreu em 1953: em 1956, Nikita Khruschov fez o famoso discurso no 20º Congresso do Partido Comunista, denunciando expurgos e assassinatos cometidos durante o longo tempo que Stalin liderou o país – fato que acabou levando a uma distensão política, com efeito imediato nas artes, inclusive no cinema. Os historiadores costumam usar a metáfora natural do gelo e degelo para descrever as alternâncias de poder na URSS: a Primavera, naturalmente, foi um degelo. Quem consagrou o binômio foi Ilia Ehrenburg, escritor e jornalista ucraniano de origem judaica. Em 1954 publicou “Degelo” (Óttepel, em russo transliterado) em uma revista mensal – curta e decisiva obra de ficção, que entrou para a história como signo de ruptura política e cultural da era stalinista. Nação literária, o enredo imaginado pelo escritor – um gerente de fábrica despótico, um pintor de quadros laudatórios e um honesto artista excluído das honrarias – atingiu, com toda sua simplicidade, os fundamentos da produção artística e reverberou na vida nacional. O uso metafórico da palavra Óttepel – degelo político, primavera no sentido figurado – fixou-se no imaginário da intelligentsia do império soviético. Um dos diretores mais identificados com a Primavera, Marlen Khútsiev foi aluno da VGIK, a lendária escola de cinema: seu nome, Marlen, era eloquente em si mesmo – “Mar” de Marx, e “Len”, de Lênin – homenagem dupla que seu pai, bolchevique convicto, inventou. Em 1937, quando tinha 12 anos, o choque:
A polícia do NKVD (que depois veio a se chamar KGB) entrou na nossa casa e prenderam meu pai enquanto eu dormia. Eu dormia com ele no mesmo quarto. Junto a minha cama estava a dele, as duas grudadas. Mas aconteceu de tal forma que eu nunca percebi. Pela manhã olhei e meu pai não estava. Perguntei: “Onde está o meu pai?”
Khútsiev nunca mais viu o pai. “A porta de Ilitch” era o título inicial da obra que Khútsiev começou a rodar em 1961. Também é o nome do bairro da capital onde mora o protagonista Serguei, sua família e dois amigos de infância. A primeira parte do filme, o retorno de Serguei, é uma aceleração de afetos, encontros e promessas, uma excitação juvenil diante do futuro – e a cidade de Moscou, a forma pela qual é fotografada, com a câmera leve, como o quadro cinematográfico arejado, reforça o páthos dos personagens. O clímax é a Parada do Primeiro de Maio, data obviamente significativa em um país socialista. Política e alegria se misturam no frenesi da população, movimentos e olhares capturados de uma forma pouco vista no cinema, acostumado à rigidez dos desfiles stalinistas. Na segunda parte, paira a maturidade de Serguei e seus próximos: dúvidas existenciais, incertezas diante do futuro. O pai de Serguei, morto na Guerra Patriótica (como os russos chamavam a 2ª Guerra Mundial), retorna em sonho, integrado à narrativa. Monólogos pessimistas e diálogos intensos tomam a cena, que converge para uma festa de rompimentos: um dos coadjuvantes é Andrei Tarkóvski, em um papel “irritado e antipático”, como disse Khútsiev. “Tenho Vinte Anos” é uma mescla do social com o natural: a apoteose da liberdade da Primavera, um paganismo socialista. A dinâmica da linguagem é o fluxo da vida diária, pontuado pelo ciclo das horas do dia e pela alternância das estações. Moscou acaba por ser, na sua abrangência, uma variante do cosmos: a luz que a ilumina, os reflexos do céu no asfalto úmido, a rua de paralelepípedos, o rio gelado, os passageiros no transporte público e as demolições urbanas.
Durante as filmagens, Khútsiev teve o apoio da Ministra da Cultura, Ekaterina Furtsieva, próxima de Khruschov. Ao final de 1962, os sinais se inverteram: Khruschov começava a perder poder para os conservadores do Partido, e por tabela sua Ministra da Cultura também. O Primeiro-Ministro tentou mudar sua imagem de liberal e convocou seiscentos artistas e intelectuais no Kremlin, em março de 1963, para um escárnio público da excessiva liberalização das artes: entre os singularizados estava o filme de Khútsiev. Os personagens, disse Khruschov sobre “Tenho Vinte Anos”, são pessoas moralmente doentes: os jovens decidem por eles mesmos o que fazer na vida, sem pedir conselhos aos pais. Uma subversão hierárquica intolerável, inaceitável e estrangeira para o povo soviético. Khútsiev foi obrigado a fazer cortes e reeditar o material. A nova versão foi lançada em janeiro de 1965, com o título que conhecemos.