Suspiria
A exumação de uma fábula
Por Ciro Araujo
Enquanto Alice disparava atrás do Coelho para se encontrar numa espiral do desconhecido, Dario Argento atentamente respirava a fábula para escrever “Suspiria”. A diferença está em como o diretor troca as maravilhas pelo mal. Assistir a cena inicial da corrida de taxi em uma noite tempestuosa até a floresta em total escuridão salvo a floresta e uma mulher que corre por ajuda, enquanto o rock-progressivo faz seu trabalho primoroso é uma sensação quase única de gerar empolgação e terror.
O primeiro passo para “Suspiria” criar essa noção de mal é transformar o inanimado em horror. O giallo de Argento não existiria sem sua trilha performática e gritante, que acompanha o progresso de Suzy (Jessica Harper), a protagonista, durante essa toca do Coelho. O trecho em repetição, uma canção de ninar, atiça diabolicamente quem assiste numa espécie de brincadeira (o aspecto infantil é substância primordial da estética) durante a película. De certa forma, Argento já estaria criando uma espécie de novo gênero, que culmina justamente nesta obra e em sua sequência, “Inferno”, um uso do cenário italiano de rock-progressivo que chegava nos anos setenta. Neste, a banda Goblin refaz o progredir através da trama e insere, poeticamente como uma agulha inserindo dentro de alguma veia, a adrenalina causada pelas notas rápidas de teclado. O respirar da audiência torna-se lento, mas a ação dentro do filme, é o inverso. Um suspense que se desliga mais do “Hitchcockiano”, já que realmente, como é visto em sua forma visual, a tensão está exatamente no que não sabemos, o que está detrás da porta.
Atmosfera montada, o filme passa a criar seu próximo dispositivo, a mansão. Através de uma construção barroca – e, não por acaso, uma cor vermelho-sangue muito bem escolhida, ponte para a direção de arte magnífica – aqui há a produção do personagem que persiste durante a trama, um ator sem falas e que abriga todo o mal. Um dispositivo-personagem. O olhar amplo das lentes do diretor de fotografia Luciano Tovoli produz a sensação da própria residência espionar o progresso de Suzy. O medo produzido então soma essa espionagem (visão) aos sussurros (audição) como forma de produzir um “não-escape” do espectador que, caso esteja receoso de ver o horror, ele de qualquer forma irá senti-lo, pois o ouvirá.
Como qualquer horror, o clássico clichê do escuro se faz presente. Não, não é uma escolha barata, pelo contrário. Misturar a fotografia de alto contraste e colorida, o escuro e, por fim, subordinados do prédio quase-vivo em que se passa o filme, paredes, janelas e portas, troca o resultado antes considerado clichê. Nem espectador, nem personagem saem na frente sabendo o que lhes irá acontecer. Ora, se um dos pilares do cinema é enganar quem assiste, por que não fazer exatamente isso com ambos? “Suspiria” requer que a paranoia esteja presente em seu cenário para, por fim, transformar a energia gerada em todos seus minutos numa grande catarse em seus últimos minutos. É aqui que está o presente o mencionado anteriormente, a antítese de Hitchcock. Para bem (ou para o mal, depende como visualizar), o medo realizado pelo progresso cego é síntese do filme, é tão combinado com a inocência jovial do mito de Alice, da curiosidade jovial e irracional.
Argento por vontade própria de perverter esse mundo infantil, traz personagens deformados, sacaneia com cegos e ri da ingenuidade alheia que o mundo apresenta. Talvez como mais marcante dessa pulsão esteja exatamente nas maçanetas colocadas na altura dos olhos dos atores e produzidas pelo excelente departamento de arte do filme. “Suspiria” exala a infantilidade pretendida originalmente no filme, que teriam crianças atuando – e que mais tarde o tema estaria presente e estudado explicitamente em outro filme de Argento, “Phenomena”. A submissão de Suzy vigente aqui, inclusive, é quase uma exumação de uma fábula, uma necessidade constante do diretor que a qualquer momento flertaria nisso. Seus thriller procuram esse interesse de entender que a origem da força literal “maldade” venha do infantil, da época infantil. A velha história da criança que ouvia todos os dias para fazer o que lhe foi dito, mas não foi dormir e acabou descobrindo demais e teve que arcar com as consequências. Perverso, mas é perfeito em ponto para assustar. Talvez uma palavra depois de alguns outros neologismos, para “horrificar”.