Soul of a Beast
O delírio da alma
Por Vitor Velloso
Durante o Festival de Locarno 2021
O dinamismo e a inquietação de “Soul of a Beast” são estonteantes. Uma montagem veloz, próxima dos personagens, com a música cadenciando essa velocidade e a câmera lenta criando um lirismo de oposição ao caos imagético. Tudo isso toma conta da primeira metade do filme de Lorenz Merz, que surge como um objeto selvagem em meio ao contraste urbano e o delírio animalesco. Nada se mantém firme, em um movimento incessante e hipertérmico as imagens vão se somando de tal maneira que um sentimento labiríntico vai tomando conta do filme. Uma série de experimentações em um zoológico vão desarticulando a narrativa para uma paranoia dos personagens, agarrando-se ao sentimento mais primitivo das reações atravessadas pela droga, medo, desejo e ego.
Mas ao fim dessa empolgação inicial, as referências mais explícitas de Wong Kar-Wai, Dolan e as transições Lynchianas se tornam muletas para um projeto que se abre às sensações mas não consegue encontrar uma base para se apegar. Uma série de apropriações são feitas como meros dispositivos estilísticos nas investidas formais de algumas transas culturais. É um filme que se articula em torno de uma proposta do frenesi dos problemas de seus personagens, sem conseguir expandir essas subjetividades para algo verdadeiramente concreto. O maior problema de “Soul of a Beast” é que seu eurocentrismo cria barreiras para distanciar parte de suas propostas de um exotismo inócuo, instrumentalizado por uma certa histeria libertadora. Quando consegue provocar confusão pela sequência atordoante, é capaz de provocar alguma impressão, mas o repertório parece se encerrar próximo a metade do filme e seus ciclos são manutenções constantes dessas supostas bizarrices narrativas e suas imagens vão perdendo força drasticamente.
De toda forma, o longa insiste na imaterialidade na intenção de reproduzir algum brilhantismo deslocado da primeira metade. É limitado em suas apropriações, utiliza-se de espadas samurais como descreve a Guatemala, sem um objetivo claro, apenas o exotismo primário do velho eurocentrismo. É fácil se perder em meio ao “enigmatismo” dos personagens e da viagem lisérgica de um irracionalismo operante, com alguns furtos dos cinemas periféricos, o filme vai se moldando como um projeto que tem um potencial forte para erguer uma boa estrutura caótica, mas sempre cai na mesmice. Até mesmo quando propõe o surto da burguesia em seus rituais esotéricos, com um desfecho violento a la David Cronenberg, o fetiche impera nessas resoluções imediatas e pragmáticas. É contra o consenso burocrático do grande mercado, porém caminha de mão dada com as necessidades de apropriação internacionalista.
“Soul of a Beast” possui um drama central entre Gabriel e Jamie que é honesto o suficiente para segurar as pontas das relações entre os demais personagens, ainda que não consiga desenvolver seus tópicos sem as muletas formais que sempre retornam como forças “orgânicas” de seus personagens, impulsos irracionais que os levam à situações limítrofes, que só funcionam a partir da montagem, que é capaz de fragmentar a representação em tempos e espaços transeuntes. Nessa esteira da mutação permanente, algum discurso político é introduzido como conotação majoritária da incapacidade de lidar com as mudanças. Manifestações explodem, o mundo parece ruir e a violência é a única manifestação possível em meio ao caos, um embate entre o Estado e parte da sociedade. Mas até aqui, existe a mitificação dessas representações, o povo surge como uma população “transgressora”, que transa na barbárie das ruínas institucionais. O motor dessa descentralização é tão utópico quanto as formulações dessa narrativa que não se encontra, tentando provocar sentimentos e perdendo vigor com a progressão.
A visceralidade encontrada em lampejos breves de cenas isoladas, dá lugar ao vácuo dessa crença no lirismo poético da burguesia em declínio junto às estruturas do planeta, o sonho catalítico das potências é a organização da unicidade cósmica a partir de um anti-naturalismo paisagístico, uma retórica orgânica para a matéria. Na falta de expressão, recorre ao exotismo e finda no mesmo imbróglio intelectual do cinema europeu contemporâneo. “Soul of a Beast” possui um início tão frenético que esconde inicialmente a herança demagoga de uma classe que não compreende a origem de seus próprios fetiches. A cena do zoológico é como um retorno primitivo às bases desses corpos em um plano espiritual. Quando adicionamos a matéria na representação, é possível lembrar que o cinema brasileiro encerrou o assunto nas periferias já na década de 70-80.