Sono de Outono
Tempo e caos
Por Vitor Velloso
Durante o Festival Ecrã 2020
Um projeto como “Sono de Outono”, nos mostra que a conscientização de uma estética que precisa buscar na irracionalidade e no radicalismo é uma conjuntura diferente da proposta materialista convencional. Não é possível concretizar uma política através dessa questão, assim, esse materialismo surge como um meta-cinema que abarca o caos como início e fim de tudo. Uma distorção do tempo e da realidade, onde o mecanismo cinematográfico é relacionado com a História do mesmo e se apropria da linguagem para que se coloque a mesma em cheque.
Atrelar a base de Michael Higgins com qualquer linha ideológica cinematográfica e política pode parecer precipitado em um primeiro momento, porém, é onde mora o desafio, já que a crítica situacional que o cineasta vai fazer do lugar de produção e dessa estrutura econômica inerente à materialização do cinema, encontra aqui uma realidade que não se compreende em estrutura dramática e muito menos em uma misancene que articula alguma aproximação com movimentos. O deslocamento da profundidade se dá através de sua artificialidade, do absurdo, o que podemos ver em Jarman de maneira próxima, mas não tão radical, com exceção de “The Last of England”.
E aqui, o conteúdo atravessa uma proposição de gênero cinematográfico, acertando uma ideia mais expressionista de uma concepção dos reverbs imagéticos. É claro que podemos argumentar o reacionarismo presente na referência, mas não a partir da linguagem, que é o eixo da produção. Assim, Higgins consegue se aliar aos mais alienadores dos autores, mas ser particular em sua abordagem, um feito digno de nota. E onde a proposta parece falhar em nortear algum interesse do espectador no encaminhamento da suposta trama, o filme parece tentar manter-se paralelo a qualquer iniciativa, reformulando o abjeto de um possível racionalismo através da objetiva, ora retirando o enquadramento de seu eixo, ora deturpando algum encaminhamento para uma experiência mais científica da coisa.
E se o objeto em si, torna-se ciência, em analogia explícita ao cinema, esse lugar se deforma a partir de tramas subsequentes, que complementam-se pela criação, pelo estudo ou pela destruição, um caos que surge como divindade, psicológica ou material, mas que está sempre mirando um retorno primitivo de seus elementos alienadores. É um mito que se concebe através do (in)consciente do (ir)racional, tornando assim o exercício uma circularidade de crenças através dessa materialidade inerente ao material que a produz. Planos fechados no maquinário da projeção, experiências, uma encenação que tentar replicar a estrutura inicial da arte cinematográfica etc, compõem uma imaginário idealista, porém deturpado. Aqui nasce um axioma que o diretor contorna com uma dialética própria, onde detém uma ambiguidade, dual, que se corresponde em sua base da “trama”.
O problema é que a solução encontrada pelo projeto se ancora primordialmente nos paralelos de suas objetividades, tornando a obra mais paradoxal que almejava, em termos de forma. Pois onde se compreende realizando uma revisão crítica dessa linguagem, através dessa reestruturação da forma em pensamento contemporâneo, delineador do real, cai no pensamento arcaico de uma aura que se transforma através da idealização da encenação. E aqui situamos a lógica paradoxal do diretor. Ainda que o pensamento não seja de todo simplificador, já que se coloca em pauta a reformulação através dos close em um momento final, onde o caos e a destruição se fazem presente para anunciar o fim da projeção, aqui, outro caráter dialético em sentido literal do confrontamento de ideias a partir do virtual, real e da concepção criativa.
O sonho é material a partir do cinema, abraçar a irracionalidade não deve ser vista com maus olhos se não há declinação da materialidade do almejo, aqui visto também de forma paradoxal como pesadelo. Em sintonia com a criação materialista e a alienação psicológica da criação, o autor se vê como produtor, onde é necessário que se extrapole os limites de um maquinário. O axioma inicialmente proposto, pode ser desviado pelas falas (raras) durante “Sono de Outono”, o que transforma o problema em solução de primazia materialista, sem resolução, mas que Higgins não se dá o trabalho de corresponder, pois no mundo da irracionalidade e do caos, o pó é início, meio e fim. Almejamos vinagre, fazemos cinema e vomitamos demência, atrás da porta há o imbróglio da teoria. A materialidade que se corrompa em gangrena formal.