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Songs My Brothers Taught Me

Paisagens não-ordinárias do cinema

Por João Lanari Bo

Mubi

Songs My Brothers Taught Me

Um modo instigante de adentrar a mitologia do cinema norte-americano é associar paisagens extraídas desse vasto território com a ocupação simbólica da captação audiovisual, atrelada a trajetos e percursos de personagens. Isso não é novidade, a saga de Ulisses narrada por Homero no relato fundador do Ocidente, “Odisseia”, cumpriu, pela palavra poética, o mesmo desígnio. Hollywood inventou um gênero cinematográfico, o “western”, para reproduzir essa façanha: desertos, cerrados, rios, montanhas e espaços vazios a conquistar foram dramatizados para projetar a ocupação do Oeste pelo Leste, civilização e barbárie. John Ford, o grande codificador dessa linguagem, escolheu o Monument Valley como cenário ideal dessa grande aventura: John Wayne com seu andar balanceado olhando a linha do horizonte com apetite e transcendência. Em mais de um século de ocupação, é claro, sobra espaço também para paisagens não-ordinárias, heterogêneas: é nessa fissura que mergulha o primeiro longa da cineasta do momento, Chloé Zhao, “Songs My Brothers Taught Me”, filmado em 2014 numa zona quase-fantasma desse imenso território, a reserva Pine Ridge dos Oglalas, um dos subgrupos do povo Lakota, localizada na Dakota do Sul.

Para nós brasileiros, habitantes de um igualmente vasto país – resultado também da expansão colonial dos países europeus a partir do século 16 – o cenário das reservas indígenas é, em princípio, familiar. O adjetivo “familiar” deve ser lido aqui na acepção psicanalítica: remete também a um estranhamento, uma dificuldade de compreensão resolvida por uma (falsa) síntese. Ou seja, uma alteridade cuja assimilação é problemática. O filme de Chloé tem esse mérito: constrói um espaço dramático dentro da reserva, sob as condições esgarçadas que a expansão capitalista desenfreada nos EUA designou para aquela porção do território, desde o século 19 até hoje – a Pine Ridge é uma das áreas mais pobres dos Estados Unidos: apenas um Oglala em cada cinco tem emprego, o atendimento médico é inadequado e a escassez de moradias é crônica. Os atores não-professionais de “Songs My Brothers Taught Me” tangenciam essa realidade, circulam nesses espaços: o álcool é ilegal na reserva, logo contrabando é uma opção, a despeito dos riscos; virar um cowboy, outro mito hollywoodiano, é o desejo; interagir afetivamente, com namoradas, irmãos e irmãs, inclusive os “postiços”, é incontornável.  Migrar para Los Angeles afigura-se como a saída, a conquista definitiva, movimento em direção ao Oeste.

Para construir um espaço como esse, a diretora valeu-se de uma matriz formidável, Terrence Malick, o mais metafísico dos realizadores dessa nação audiovisual que são os EUA. Planos e cortes inusitados, movimentos de câmera e de personagens sem a continuidade habitual dos códigos saturados de leitura, dão a “Songs My Brothers Taught Me” uma sensação de extraterritorialidade e leveza, uma dimensão espiritual, por assim dizer. É como se a herança daquele povo massacrado resistisse na nuvem diáfana de poeira exalada das terras erodidas – como nos planos que fecham o filme. Badlands é a designação em língua inglesa dessa paisagem ruiniforme de características áridas, extensamente erodida pelo vento e água: também é o título do primeiro longa de Malick, de 1973. O termo vem do povo Lakota, que nomeou a topografia: mako sica, literalmente “más terras”. O nome é apropriado: chove pouco mas intensamente, quando chove; e a vegetação é escassa. A paisagem é caracterizada por encostas inclinadas, terra solta e argila, fato que impede trânsito confortável. Para Johnny Winters, epicentro do filme, a paisagem é uma espécie de projeção mental, caminho tortuoso de encontro com a irmã Jashaun, que busca nele a compreensão e o apoio emocional que não encontra em nenhum outro lugar: é, enfim, o polo gravitacional que gera uma cosmologia particular, malgrado a devastação levada a cabo pela so-called civilização.

Extraterritorialidade é uma espécie de código-chave para aceder ao universo da diretora Chloé Zhao, chinesa que saiu de Pequim aos 15 anos para estudar e viver no Ocidente, aportando em Nova York, onde foi aluna de Spike Lee. Chloé roteirizou, produziu, dirigiu e editou o filme em tela: não é uma tarefa trivial. “Infelizmente, acho que vivi tanto à deriva enquanto crescia que não tenho um forte senso de identidade. Não me sinto em casa em lugar nenhum e por isso me considero mais um camaleão”, admite. Um background como esse deu à cineasta uma sustentável leveza do ser, algo difícil de entender – vide o que se passou recentemente na China, quando o governo tentou banir da internet referências a ela e a “Nomadland”, seu último filme, em razão de uma entrevista de 2013, quando Chloé disse que seu país natal é “um lugar onde há mentiras em toda parte”. Os comentários, feitos no contexto da sua mudança para Londres e a necessidade de “reaprender” sua história pessoal, foram removidos da versão online da publicação “Filmmaker Magazine”, site da entrevista, em fevereiro último. Seu próximo teste de direção é a megaprodução “Eternals”, do estúdio Marvel, previsto para ser lançado em novembro próximo. A conferir.

4 Nota do Crítico 5 1

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