Siron. Tempo sobre tela
Selvagem. Retrato de brasileiro
Por Vitor Velloso
Belas Artes A La Carte
“Siron Tempo sobre tela” de Rodrigo Campos e André Guerreiro Lopes é um documentário de suma importância para a cultura brasileira contemporânea. Não apenas por tratar de um dos artistas mais particulares da história do nosso país, como por compreender em pouco tempo toda uma trajetória da arte específica durante os anos. De Ferreira Gullar à Siron, o tutano da alma nacional ganha um respiro formal com um projeto genuinamente preocupado em traçar um paralelo para futuras gerações e uma dimensão para a atual.
O filme assume que não irá acompanhar o protagonista a partir de depoimentos de terceiros, mas sim do próprio Siron, parte para um riquíssimo material de arquivo e transa com uma fragmentação na construção que fortalece nossa proximidade com o artista, além de ampliar a visão sobre sua obra. Assim, o longa vai articulando uma totalidade realmente impressionante na trajetória e no processo criativo de um artista que não seguia grilhões sociais, morais e “valores” tradicionais. Transgressor e brazyleiro, definindo-se como selvagem, “Siron Tempo sobre tela” é uma construção que entende como funciona o processo criativo de seu protagonista e não erra a mão em tentar uma espécie de reprodução em uma estrutura que visa, a partir da montagem, seccionar seus feitos e sua história a partir do que realmente importa para o artista.
Existe aqui um pequeno paralelo com o documentário recente sobre o “Tunga”, por conta dessa característica. Mas o filme de Rodrigo Campos e André Guerreiro abre um leque de opções formais e sabe utilizar isso a seu favor. Essa expansão da matéria e do arquivo como uma forma criativa, não perde o ritmo durante grande parte da projeção e costura de maneira exemplar os próprios momentos. A feitura das obras diante da objetiva, como o retrato no vidro que se funde à imagem de Siron. O trecho onde ele fala da onça especificamente. São pinceladas de uma profunda consciência entre as linguagem à disposição, e sem dúvida uma ousadia disparar para tantos campos distintos com um sucesso particular.
É como se o documentário abrisse um imenso mosaico e utilizasse cada trecho para construir uma unidade que não segue a unilateralidade convencional e espaça os “intimismos” da objetividade, para que o espectador, passivo, enxergue que o mesmo não é possível para o protagonista. Um realce do quão diferente Siron é, em tudo. O próprio título nos dá uma perspectiva curiosa de como as coisas vão se desenrolar, “Tempo sobre Tela”, é uma “metareferência” possível ao próprio quadro e enquadramento, a objetiva que se fixa diante da obra artística, sendo uma parte essencial dela, o próprio Siron, claro.
“Siron Tempo sobre Tela” não se abstém de questões políticas de maneira igual, mostra o absurdo da destruição de uma determinada obra, o genocídio constante que os indígenas sofrem neste país e os ataques constantes de reacionários à cultura. O artista faz esse paralelo, mas é o verdadeiro motor que consegue fazer do filme algo que realmente assume uma postura diante dessa realidade nacional ao longo dos anos ali retratados. Sendo uma espécie de síntese da precariedade generalizada que assola nosso país.
E quando volta seu foco para a mente, ainda é capaz de dançar conforme a música. Onde espaços são levados a memória e passado e o presente nos mostram figuras diferentes mas com expressão semelhante, além de uma vontade inigualável de “falar”, “mostrar”, “fazer”. Seu ímpeto até em fazer a denúncia contra o genocídio dos brasileiros, recentemente mostra que sua importância é parte de seu motor criativo. Talvez por isso, o filme de Rodrigo e André prove que é uma das obras que mais deveriam ser assistidas por brasileiros, em um momento onde o mundo parece consumir cada um e as preocupações são normalmente exteriores, deveríamos olhar um pouco para dentro.
Sem compreender ou tentar decifrar, mas se deixar levar por impulsos que a sociedade tenta reprimir ou engessar de alguma maneira. Por sorte, seu fascínio por imagens, rende mais que apenas telas, sim um retrato de brasilidade plena.