Silêncio de Rádio
A mídia e a repressão
Por Vitor Velloso
Durante o Festival É Tudo Verdade 2020
A política latino-americana nunca esteve em paz. Ainda que alguns países estivessem mais confortáveis com sua estrutura política e econômica, a América Latina é assombrada pelo profundo subdesenvolvimento que está enraizado, de maneira estrutural, institucional, em cada processo histórico. A crise política internacional, mundial, que se instalou através de agentes do capital, corrói as entranhas do planeta, pelas beiradas. Nosotros.
O reacionarismo passou a ser eleito, ainda que falem abertamente em acabar com as instituições, protofascistas sobem ao poder após declarações criminosas e no México, o presidente diz que não irá atrás dos crimes cometidos por seu antecessor. É a degradação institucional que o capital mais almeja. Um processo de fragilização tão profundo e denso, que seja necessário introduzir investimentos estrangeiros, abertura de comércio com os tubarões econômicos. No mundo mágico de Oz, um professor de Geografia da UFRJ, Paulo Cesar, recentemente, diz acreditar que isto tudo é um processo “natural”. Orai por nós. Pois se essa é a análise do docente de uma das faculdades mais respeitadas da América Latina, estamos caminhando para o fundo do poço. Inclusive, fica o questionamento, cadê a “doutrinação” que os reacionários de quinta categoria estavam acusando? Olavo, o guru, que responda.
“Silêncio de Rádio”, de Juliana Fanjul, acompanha parte da trajetória de Carmen Aristegui em conseguir manter seu ofício em pleno funcionamento. A jornalista sofreu censura imediata e direta, sendo demitida junto com sua equipe, da rádio MVS.
O documentário é hábil em contar essa trajetória de maneira sintética, pois inicia seu movimento com o assassinato de um jornalista, para dar o tom de como essa repressão vem acontecendo no México. E a partir desse impacto inicial, acompanha a jornalista em tentativa de retomar sua carreira, não com intuitos financeiros, mas como uma espécie de “resistência” à política presidencial. Aqui, a palavra não ganha a conotação comum da contemporaneidade. “Silêncio de Rádio” é eficiente em traçar determinados limites para sua construção, sem que seja necessário tornar panfleto nenhum de seus posicionamentos. O faz através da montagem, que centralizando Aristegui, já torna-se político e de oposição por consciência política desse lugar de produção. É curioso ver que no México, parte das estratégias utilizadas pelos reacionários para atingir a imagem da jornalista, se assemelha, e muito, aos “nacionalistas” entreguistas negacionistas e antivax que estão andando pelas ruas aqui no Brasil. São ofensas medonhas, pessoais, que miram questões sexuais etc.
Se seccionarmos o grupo fanático e/ou financiado do resto da população pensante, ficará claro que suas questões são tão particulares e privadas, que nenhuma psicanálise resolveria. Até porque crime não se resolve em divã. E são esses os pontos que o documentário se apega, a ética jornalística, uma espécie de dever moral para com o povo, que deve estar acima de qualquer questão de sua vida privada. É claro que há uma romantização em torno disso tudo. Um contorno bastante singular em torno da questão, o que, claro, retoma o problema de tratar dessas digressões do processo democrático, como agentes isolados do mosaico político internacional. Não compreender que há um processo que é exterior à questões única e exclusivamente mexicanas, contemporâneas ou não.
Onde “Silêncio na Rádio” acerta com mais veemência, está intrinsecamente em sua montagem. Na organização de como sua narrativa e estrutura se projeta em torno de seu objetivo central, a nova trajetória que Aristegui está traçando. E o faz com tamanha consciência de seu processo, que apesar do ritmo lento, consegue manter o espectador atento às movimentações políticas que ocorrem “fora de quadro”, ou seja, exterior à este núcleo que o longa se propõe. O feito é construído através de dispositivos formais. Material de arquivo, uma ampla cobertura dessa reestruturação profissional e uma versatilidade em relacionar suas objetividades com as subjetividades de seus personagens. Assim, parte do Brasil contemporâneo deveria assistir ao filme mexicano, para que repense suas necessidades internas e privadas de repressão absoluta à comunicação. Claro, não podemos confundir um discurso dessa natureza com o cínico recentemente entrevistado no Roda Viva, na comemoração dos 70 anos da TV Brasileira. O infeliz deturpa as coisas, sua antiga emissora apoiou a ditadura e reverenciou a morte, hoje sofre com as mentiras do atual ocupante da cadeira no planalto. O mundo gira, mas a mídia é forte e o monopólio do capital mira apenas a desestabilização das instituições. E o povo tomando no centro, disse o poeta.