Sem Essa, Aranha
A câmera cínica aponta para o Brasil
Por Pedro Mesquita
“A fim de que o filme possa explorar a sua liberdade natural é necessário que tenha um compromisso mais solto, menos literal, com o contar uma “história”. A história no sentido tradicional — algo que já aconteceu — é substituída por uma situação fragmentada onde a supressão de certos vínculos explicativos entre as cenas cria a ideia de uma ação que é continuamente renovada, e se desenrola no tempo presente. E necessariamente, esse tempo presente deve aparecer como uma visão de certa forma comportamental, externa, antipsicológica, da situação humana, pois a compreensão psicológica depende de se ter em mente, ao mesmo tempo, as dimensões de passado, presente e futuro. Enxergar alguém psicologicamente é traçar as coordenadas temporais em que está situado. Uma arte que vise o tempo presente não pode aspirar a esse tipo de “profundidade” ou interioridade na descrição dos seres humanos. A lição já está clara a partir da obra de Stein e Beckett; Godard a demonstra para o filme”, diz Susan Sontag.
“Pode-se observar que nos filmes [de Hawks, Fuller e Godard] os conflitos provêm do instinto animal dos personagens, da condição animal do homem. E é por isto que a psicologia é relegada a segundo plano, tornando-se impotente para “explicar” este instinto. […] Tanto Fuller quanto Godard não forçam uma explicação, não impingem um conhecimento relativo porque sabem que não conseguimos conhecer, saber ou possuir os seres e objetos, conseguimos somente ver que eles existem”, coloca Rogério Sganzerla.
Não é por descuido que começamos a falar de um filme de Rogério Sganzerla a partir de citações sobre a obra de Jean-Luc Godard. O cineasta brasileiro foi um grande admirador do francês, tendo escrito intensamente sobre os seus filmes nos anos que precederam sua carreira de cineasta, quando atuou como crítico de cinema.
Da sua obra crítica, podemos recuperar um conceito que parece valioso para analisar a sua carreira como cineasta: o conceito da “câmera cínica”. Desenvolvida num artigo escrito para o jornal “O Estado de S. Paulo” em julho de 1964, a ideia da “câmera cínica” surgiu para descrever uma atitude comum compartilhada pelos principais cineastas modernos daquela época (entre os quais ele sempre mencionava, além de muitos outros, Howard Hawks, Samuel Fuller, Orson Welles, Yoshishige Yoshida e, é claro, Jean-Luc Godard). Esses cineastas, segundo Sganzerla, filmavam os seus objetos com um certo distanciamento emocional — daí o adjetivo ‘cínica’. Contrapondo-se às convenções do cinema clássico (que, por sua vez, herdou suas convenções narrativas do romance realista do século XIX), eles não colocam a câmera na condição de um narrador onisciente, que tudo sabe, que tudo revela ao espectador. As personagens não são detalhadas psicologicamente, moralmente ou sociologicamente; sem poder adentrá-las e analisá-las a fundo, como fazem os romancistas, a câmera só apreende as ações das personagens, mas não as explica ou justifica. Vale repetir um pedaço do texto: “não conseguimos conhecer, saber ou possuir os seres e objetos, conseguimos somente ver que eles existem”.
Este longo preâmbulo não é injustificado: basta notar, ao nos voltarmos enfim ao nosso objeto de estudo, que “Sem Essa, Aranha” é um filme concebido sob a estética da câmera cínica.
O filme acompanha um grupo de personagens, dentre os quais destacam-se aqueles interpretados por Jorge Loredo, Helena Ignez e Maria Gladys. Loredo é Aranha, um burguês; Helena e Maria, duas atrizes que trabalham para Aranha. A partir daqui, estender-se no exercício de análise das personagens seria um esforço em vão: o que o filme nos apresenta são personagens opacas, sem profundidade psicológica. Ao contrário da descrição romanesca, que descreve tão detalhadamente o mundo interior das personagens a ponto de torná-las únicas, as personagens de “Sem Essa, Aranha” são rasas. Todas elas possuem um traço característico que as define, e que carregarão ao longo de todo o filme, sem que se pretenda encenar, como nos moldes clássicos, a transformação das personagens de um estado A para um estado B. Ao invés de percorrer um itinerário narrativo, as personagens vagam, repetindo em loop os seus anseios sem saber resolvê-los: a personagem de Maria Gladys, por exemplo, passa o filme inteiro reclamando que tem fome; a de Helena Ignez repete frases apocalípticas, lamentando pelo fim iminente da humanidade. Sganzerla faz, como nas palavras de Susan Sontag, uma “arte que [visa] o tempo presente”, e as personagens, presas a esse tempo presente, não resolvem nunca os seus conflitos. Como imaginar um “happy end” no auge da ditadura militar?
No lugar de uma narrativa linear, somos apresentados a uma narrativa episódica, abstraída das relações de causa e consequência entre as cenas. Cada um desses episódios possui vida própria e não se reporta senão vagamente aos demais. Novamente, lembramos de Godard, que colocou em seu filme “Viver A Vida” (1962), de similar estrutura episódica, o subtítulo film en douze tableaux (“filme em doze quadros”), pois essa expressão poderia muito bem se aplicar a “Sem Essa, Aranha”. Os “quadros” de Sganzerla, apesar de longos, nunca deixam de nos encantar e surpreender pelo seu constante jogo entre realismo e abstração.
Por um lado, o realismo: a liberdade de improvisação garantida aos atores desestabiliza a ordem da cena, ocasionando a eclosão de eventos simultâneos (um personagem falando à câmera, outros conversando entre si, performances musicais etc) aos quais a câmera deve reagir, necessariamente priorizando um em detrimento dos demais, até que ela mude de opinião e resolva se voltar para outro foco de atenção. Assim, não é incomum que a câmera “abandone” um personagem para reencontrá-lo mais tarde em outro local da cena, fazendo algo completamente diferente do que fazia antes. Esse caráter vivo do espaço diegético — que atinge seu paroxismo na brilhante cena em que as personagens descem um morro acompanhadas de dezenas de figurantes acidentais (provavelmente moradores da região), entre eles até cachorros — nos faz lembrar das obras-primas de Jean Renoir, como “A Regra do Jogo” (1939) ou “French Cancan” (1955), com a ressalva de que, se o realismo de Renoir se fez por meio de ensaios, o de Sganzerla se fez pela improvisação e por uma radical abertura ao acaso.
Por outro lado, a abstração: esse movimento constante da câmera com relação ao espaço no qual ela se encontra resulta num efeito de confusão, pelo qual não conseguimos, às vezes, compreender o espaço na qual as personagens estão situadas. Tome-se como exemplo uma das cenas que começa no palco do teatro e termina no camarim. Sabemos que ela começa num ponto e termina em outro, mas o caminho entre eles envolve tantos movimentos de câmera que torna-se quase impossível restituir mentalmente a cena que acabamos de presenciar. Outro efeito de abstração é a construção sonora das cenas, que chega a envolver, em certos momentos, tantas vozes simultâneas que deixamos de entender a “mensagem” para ouvir apenas uma sucessão de ruídos.
Não à toa essa sobreposição de vozes é um dos aspectos mais marcantes do filme: “Sem Essa, Aranha” é um filme sobre a presença simultânea de opostos irreconciliáveis num mesmo território. Desse encontro, não pode resultar senão uma experiência ruidosa, cheia de cacofonias. A única harmonia possível virá da eliminação dos espoliadores em prol dos espoliados. Ao som da sanfona de Luiz Gonzaga.