Sem Coração
Simbolismos de nós mesmos
Por Fabricio Duque
Festival do Rio 2023
A decisão de transformar um curta-metragem já realizado e estendê-lo em um longa-metragem é arriscada, podendo inclusive ser um “tiro no pé”. Isso porque tudo precisa ser alterado, especialmente seu tempo narrativo, além, logicamente, da criação da expectativa no público, que inconscientemente já gera o querer da mesma qualidade. No passado, Daniel Ribeiro conseguiu manter a excelência de “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, e hoje, a façanha de Nara Normande e Tião é concluída com sucesso com “Sem Coração”, exibido no Festival de Veneza deste ano e depois integrando a mostra competitiva do Festival do Rio 2023.
“Sem Coração” desenvolve-se como uma fábula sobre uma menina “sem coração”, metáfora esta que consegue traduzir bastante os meandros existencialistas de todo e qualquer ser humano, especialmente no momento atual em que a empatia, solidariedade, presteza e educação parecem símbolos perdidos. Este filme conserva a atmosfera naturalista do curta, por um movimento contemplativo de vida acontecendo, captado por uma câmera “mosca” que passeia e ora subaquática, integrada ao coloquialismo do cotidiano das personagens; e também construído por uma estilizada fotografia orgânica de nostalgia importada e evocada em um presente de ambiência atemporal (talvez pela granulação de aparência 35mm), com uma luz estética que coloca o espectador no limiar da realidade em si e da projeção de um instante inventado pela ficção.
Aqui, o filme constrói a suspensão do tempo, filmando a invisibilidade do cotidiano. “Sem Coração” é sobre uma inocente liberdade perdida, que encontra abrigo, salvação e cura no mundo único e próprio dos amigos, estes que dão força, que puxam a orelha e que não se preocupam em suavizar a verdade quando falada. Esse grupo vivem as mesmas questões de todo e qualquer adolescente: anseios, medos, culpas e “infrações” (invadir casas para “zoar”). Nara e Tião criam um universo livre, não pueril e sem preocupações conservadoras não moralistas, em que nudez e a descoberta da sexualidade com filmes pornôs apresentam-se genuínas e naturalizadas (em ações e diálogos não dramáticas, tampouco sentimentais). “Sem Coração” é uma experiência de sinestesia e que faz com que queiramos morar no filme, que acontece durante o verão de 1996, no litoral de Alagoas. Nós sentimos o vento, o silêncio e tempo sem pressa de acontecer, entre a diversão desmedida, que se assemelha ao universo do realizador franco-tunisino Abdellatif Kechiche, de desejos fluídos, livres e sem pecados, com um que do diretor francês François Ozon (de “Verão de 85“).
“Sem Coração” também quer simbolismos premonitórios e etéreos, como por exemplo, a passagem bíblica de Jonas e a baleia, de pausa para ganhar força para a batalha e talvez também seja um rito de passagem (um processo e sexo com plateia) à fase adulta (e o “refúgio” possa proteger do medo do novo). Entre a Rainha dos Raios, festas com música “Please Don’t Go”, brigas homofóbicas (discurso à aceitação da diversidade sexual, a mensagem é “aproveite a possibilidade”, disse uma das mães. Tudo aqui é sobre a inocência sensorial em processo de perda quando alguém deseja se tornar maduro (mas os adultos e os pais não são bons e nem convidativos a relações saudáveis). Neste filme, nós nos damos conta que é muito simples viver, mas que complicamos tudo sem saber o porquê. Eles, esses sonhadores, entram para o time dos “peixes grandes” quando percebem as mazelas da “frustração dos outros” e do sofrimento por serem o que são. Por que suas atitudes incomodam tanto? “Está escuro, mas depois o olho acostuma”, diz-se.
O “Sem Coração” de agora quer incluir, neste nosso novo mundo contemporâneo, mais dignidade à personagem e mitigar julgamentos prévios que podiam soar como a Geni da música de Chico Buarque. O ser “Sem Coração” (por causa de uma cicatriz que tem no peito), uma adolescente misteriosa, ganha nome, humanidade, explicação, embasamento e um universo todinho para explorar, com meninos, meninas e até mesmo sozinha. Na história religiosa, Deus mandou Jonas fazer algo, Jonas recusou e Deus enviou uma tempestade como punição, mas também enviou uma baleia para salvá-lo. Jonas orou, se arrependeu e Deus mandou a baleia cuspir Jonas. Pois é. Pois é, este Deus mais “sensível” e dominador representa as provações que temos que passar. Que somos obrigados a aceitar. Só que aqui, a “Sem Coração” (interpretada pela atriz Eduarda Samara) segue outro deus, uma deusa em que a própria força está em cada um ser seu próprio salvador. “Sem Coração” é assim: “coração em pessoa”.