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Selvagem

Digressões e continuidades

Por Vitor Velloso

Reserva Imovision

Selvagem

“Selvagem” de Camille Vidal-Naquet é uma obra que tenta estancar um frenesi constante de seu protagonista. É uma espécie de mediação entre a libertação desse caos trancafiado e o rigor formal quase geográfico. Por essa razão, o que mais se destaca com a progressão é a performance central de Félix Maritaud que surge como uma força de digressão em meio aos espaços do quadro, centralizando a proposta dramática em torno de si. Não à toa, fica claro que a direção passa a apoiar-se na interpretação de Maritaud, concentrando todas suas investidas na representação de um universo maldito e marginalizado nessa figura de Léo. 

E aqui, algumas questões acabam deslocando a obra para resoluções narrativas que são ambíguas em si. A estrutura que “Selvagem” constrói, revela essa margem social da prostituição, de fetiches, abuso de drogas, violência e degradação, contudo essa base representativa surge como um reforço do estereótipo da homossexualidade como uma espécie de “maldição”. A silhueta formalizada aqui não diz respeito apenas às práticas sexuais em si, mas a própria liberdade que precisa estar em constante manutenção, onde as instituições conservadoras, mais ou menos tradicionais, são colocadas como verdadeiros empecilhos para esse desprendimento do protagonista. É uma reivindicação da conceituação burguesa do termo, pois desassocia as práticas para que possamos compreendê-las como “grilhões” que oprimem o personagem de sua própria “natureza”. Além da clara problemática conservadora (já clássica) diante dos corpos, a idealização de uma naturalização no processo de “selvageria”, explicitado aqui e acolá no universo do filme, é um movimento antimaterialista que a obra realiza. 

Na mesma direção que parte do cinema francês contemporâneo, as estruturas formais do filme são articuladas para tentar criar um naturalismo na condução, que se confunde no brio por explosões paulatinas. É uma espécie de síntese da produção burguesa na história do país, sempre em um ciclo vicioso de castração, seja por sua hegemonia programática ou mesmo um desejo em caminhar próximo à essa libertação política pela práxis, refletindo o que a classe compreende em uma espécie de exposição vulgar contra sua base clássica. Ou seja, retomamos ao velho ponto da mise-en-scène pós-Truffaut, entre um rigor e a preparação de uma explosão mais incisiva. É um “Sinônimos” mais acovardado. Essa necessidade do “instinto” para o funcionamento do longa, encontra o escape mais óbvio que a indústria encontrou nos últimos anos, a luz piscando para animalizar os movimentos do personagem, tornando a própria cena imprevisível.

Apesar de tudo, é engraçado ver “Selvagem” querendo se libertar dos julgamentos morais e trabalhando em torno deles para tentar fazer a narrativa funcionar. O próprio arquétipo que a estrutura procura, de dois pólos que refletem desejos distintos e inalcançáveis, é uma ideia primariamente cristã e conservadora. Uma que o atrai para a danação pela sedução e o outro que pela violência responde uma tentativa de afeto, uma repulsa que o protagonista não nega e faz constantemente a mesma coisa, mas não compreende esse carinho como uma “redenção” e sim “permissão”. Assim, Vidal-Naquet parece distante de uma resolução formal que consiga cadenciar essa intensidade do protagonista, para uma imagem que traduza essa volatilidade. E o que vemos é uma repetição do que o cinema francês apresentou como projeto. Esse naturalismo (com luzes que não protagonizam), essa composição de fragmentos dramáticos, uma montagem cadenciada que explora a construção mais lenta e personagens pendulares ao longo da progressão. 

O mérito de “Selvagem” é encontrar o tempo para conseguir suas breves digressões, trabalhar os espaços em torno dessa narrativa de opressões, dependências e violências. Por outro lado, essa própria ideia quase geográfica que é apresentada aqui, possui duas tendências que fragilizam a forma. A primeira é não formular essa libertação de maneira distante dessa fragmentação fotográfica, que parece se esconder e aprisiona ainda mais o protagonista. A segunda é o movimento escapista de uma representação material dessa realidade, que inclina o filme ao processo mais hegemônico da indústria. Se houvesse uma intencionalidade maior de desprender dessa base quase estóica na própria identidade, as coisas funcionariam melhor. 

2 Nota do Crítico 5 1

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