Saltburn
Deslumbramento da classe média diante do luxo
Por Pedro Sales
“Eu não estava apaixonado por ele”, esta é a primeira frase que o espectador ouve em “Saltburn“. Parece inicialmente uma tentativa de convencimento, algo que, se você verbalizar, se torna verdade. Embora a paixão entre os dois personagens possa ser questionada, nesse filme é evidente o amor do protagonista pelo luxo. Na realidade, muito mais um deslumbramento da classe média diante da aristocracia inglesa, do dinheiro antigo que representa poder e tradição. A intenção da diretora Emerald Fennell, portanto, é articular um comentário mordaz e ousado acerca das diferentes classes, repleto de choques e exageros em uma estética visualmente arrojada. Apesar das boas interpretações e da fotografia inventiva, o longa esbarra na simplificação dessa relação e em uma dramaticidade inócua, incapaz de causar o menor efeito no público, aliada a uma narrativa que se encerra no didatismo excessivo, sem direito ao espectador pensar.
Oliver Quick (Barry Keoghan) estuda na tradicional Universidade de Oxford. Bolsista, a realidade do jovem se difere bastante da dos demais graduandos. Em meio a essa disparidade econômica já palpável, materializada em comentários maldosos às costas do estudante, ele conhece Felix Catton (Jacob Elordi). A amizade improvável entre o mais popular – e potencialmente um dos mais ricos da instituição – e o jovem promissor de classe média logo dá frutos. Já próximo das férias, Felix convida o novo amigo para passar o tempo em Saltburn, castelo da família Catton. Como um estranho no ninho, Oliver conhece as excentricidades dos ricos, seus vícios e manias. Mas a presença de carne nova é suficiente para abalar as estruturas do lar aristocrata, da mãe Elspeth (Rosamund Pike) à irmã Venetia (Alison Oliver).
A trama do recém chegado ao mundo dos ricos não é novidade. Não por acaso “Saltburn” foi descrito como um “Parasita dirigido por Val Marchiori”. Distante um pouco dessa comparação mais bem humorada, o longa de Fennell resguarda muitas semelhanças com “O Talentoso Sr. Ripley”. Oliver nutre uma admiração que beira a paixão homoerótica por Felix, uma amizade que avança para uma doentia relação de exploração, de quem quer sugar até a última gota do outro. No filme de Minghella existe também essa paixão pelo amigo e os resultados dessa “admiração” são bem semelhantes. Quando Oliver chega à mansão e incita os desejos de todos os moradores já pende mais a “Teorema”, mas sem a elegância de Pier Paolo Pasolini, ou a enigmática presença de Terence Stamp. A tensão sexual, inclusive, é das melhores sensações que Fennell consegue construir, a cada cena o espectador sente a potencialidade do ato sexual, seja com homem ou mulher. Se Keoghan não é tão magnético quanto Stamp no filme italiano, ele possui o mesmo efeito dentro da casa, em uma atuação potente, com ares diabólicos. No quesito beleza, Elordi é uma presença que sempre se destaca, o que parece constantemente justificar a fixação de Oliver.
Ao passo que essa sedução e destruição do seio familiar é inicialmente bem construída, aos poucos torna-se mais esgarçada e repetitiva. O tesão almejado broxa e a relação dramática entre os personagens parece nunca atingir o clímax muito em razão dessa repetitividade. Nesse sentido, as imagens expressivas constantemente construídas possuem um peso puramente visual, uma vez que o emocional jamais parece plenamente desenvolvido. Dos méritos mais visíveis do longa, a fotografia de Linus Sandgren sem dúvida se destaca. A variação da iluminação solar dos dias de verão com o neon das festas também dá vez ao azulado da noite, quando Oliver vai à caça. A decupagem inventiva propõe planos espelhados, dando indícios de uma possível fragmentação desse reflexo, e alguns planos simétricos reforçando uma espécie de ordem. Há espaços também para simbolismos, Minotauro, Teseu, Labirinto. Toda essa estilização fotográfica, a começar pela proporção de tela, é responsável por um dos filmes mais visualmente interessantes do ano, uma pena que se torna vazio dentro da narrativa, apenas uma coleção de imagens bonitas.
“Saltburn“, então, é uma obra com evidentes deficiências, desde a construção dramática que se desgasta à fotografia excelente que ganha contornos de mero exercício formal dentro do longa. Além disso, o pior se dá na tentativa de soar como um surrealismo contemporâneo, de chocar o espectador. Emerald Fennell faz tanto esforço nessa empreitada que por vezes parece desesperada para se provar como obra capaz de causar desconforto. As cenas mais polêmicas do longa se distanciam de um cinema trangressor, remetem mais à estética de Yorgos Lanthimos, que mesmo “estranha” tem boa recepção. Outro problema disso é uma certa irregularidade no elemento do choque. Um deles é de fato impactante, outro parece uma cena saída direto de uma fanfic safada, beirando o risível. Se essa tentativa insistente de ser ousada já era, no mínimo, cansativa, o didatismo “catártico” joga a pá de cal no longa. A diretora faz uma das coisas mais repulsivas no cinema: subestimar o espectador. Não há espaço para reflexões e conjecturas sobre o filme, porque tudo é entregue “mastigadinho”, esvaziando qualquer impacto possível. Um caminho muito cômodo para quem se dispôs e idealizou retratar o desconfortável.