100 anos de Pier Paolo Pasolini
Agonia e Êxtase
Por João Lanari Bo
Pier Paolo Pasolini foi um fenômeno. Seu talento e capacidade de produção impressionam: poeta, ensaísta, escritor, dramaturgo, linguista, argumentista, roteirista, cineasta, teórico de cinema, crítico literário – em todas essas áreas Pasolini lançou-se sem rodeios, de corpo e alma, literalmente. Sua morte trágica, no dia 2 de novembro de 1975, agregou-lhe uma inevitável aura mítica, uma espécie de santidade que fez de Pasolini objeto de um verdadeiro culto, exacerbado nos dias de hoje pelas redes sociais e todos os dispositivos de difusão da internet. Se estivesse vivo, completaria 100 anos no dia 5 de março de 2022.
Um “santo”, certamente, na medida em que sua sensibilidade aguda absorveu os sobressaltos e turbulências da época em que viveu, sobretudo em relação aos mais humildes. Sem excluir ou ocultar as contradições, já que nele, como sugeriu Alberto Moravia em belíssimo texto sobre o diretor, “somente as contradições permitiram a afirmação da personalidade”. Professor e membro ativo do partido comunista em Casarsa, mudou-se com a mãe no início dos anos 50 para a periferia de Roma, depois de ter sido acusado de “corrupção de menores” e expulso do partido – ao longo da vida, Pasolini respondeu a nada menos do que 33 processos. O contato “sociológico e erótico” com os borgate (jovens de periferia) impactou profundamente sua produção: na poesia (como por exemplo “Cinzas de Gramsci”), no romance (Ragazzi di vita, Meninos da vida) e finalmente no cinema, na sua estreia como diretor em “Accattone”, de 1961, que recebeu no Brasil o perfunctório título de “Desajuste Social”.
Foram necessários apenas 14 anos de atividade para Pier Paolo marcar a cena cinematográfica global com uma contundência a um só tempo escandalosa e inocente. De alguma maneira, o salto que experimentou com a vivência romana fez com que nele se instaurasse um olhar único, capaz de lidar com uma mitologia proto-cristã – o esplêndido “Evangelho segundo São Mateus”, de 1964, que inaugurou uma nova forma de filmar a Bíblia – e também uma habilidade surpreendente de “entrevistador”, visível no documentário “Comícios de Amor”, rodado no mesmo 1964, em que Pasolini viaja por toda a Itália fazendo perguntas sobre sexo, casamento, prostituição, homossexualismo e fidelidade. O “entrevistador” Pasolini é revelador: instigante, insistente mas gentil, consegue envolver homens e mulheres, crianças e adultos, extraindo um incrível mosaico de gostos, opiniões e percepções. Entretanto, os próprios locais escolhidos para as filmagens de “Comícios” revelaram a sociedade de consumo que se transformara a Itália, na virada dos 60, após a penúria do pós-guerra, insinuando uma constatação terrível que viria a afetar sobremaneira o cineasta: o chamado “boom econômico” italiano havia provocado uma “mutação antropológica no subproletariado”, engajando-o num hedonismo consumista à semelhança das classes burguesas e abalando a visão idealizada que dele tinha Pasolini.
A superação desse verdadeiro trauma histórico, sugere Moravia, seria “representar a própria mutação”. Testemunhos dessa jornada, os “diários e apontamentos” cinematografados em preparação a seus filmes são as pérolas ocultas da sua produção. Para o “Evangelho…”, Pasolini visitou Israel e Palestina, acompanhado de Don Andrea Carraro, de Assis, com quem dialogou acerca da historicidade da narrativa bíblica, explorou paisagens humanas e desérticas, amadurecendo ideias para o longa que imaginava… Na África, o relato é o de uma tentativa frustrada de filmar a trilogia trágica de Ésquilo, in loco e com atores africanos; e na Índia, cujos registros também eram para um filme nunca realizado, o projeto girava em torno uma parábola de marajás e tigres. Os diários, a propósito, configuram um conjunto à parte na obra pasoliniana: neles acompanhamos a construção da mirada particular do diretor, suas reações imediatas a rostos, expressões, desamparos, corpos, alegrias e injustiças, antecipando o olhar que sua câmera iria exercitar mais tarde, em produções como “Mil e uma noites”, de 1974, ou ainda em “Medéia, a feiticeira do amor”, de 1969, inspirada na tragédia de Eurípedes e filmada na Turquia e Síria, com a inigualável Maria Callas.
Um olhar, por certo, depurado e poético. Já em 1965 Pasolini havia lançado um manifesto por um cinema de poesia – cuja existência, segundo o diretor, não estaria dependente de um suposto lirismo poético das imagens, mas sim dos procedimentos formais da criação cinematográfica, agrupados no que chamou de “discurso indireto livre”. No “cinema de poesia” o verdadeiro protagonista é o estilo: a câmera adquire uma autonomia, como diz Deleuze, vê através dos personagens, mas também vê o mundo em que eles se inserem de um ponto de vista diferente. O resultado é uma confluência de percepções, que desorienta inicialmente o espectador, mas que produz em última análise uma imersão estimulante na obra. O produto mais acabado dessa proposta estética é o fabuloso “Teorema”, de 1968, versão cinematográfica do livro homônimo do próprio Pasolini.
Glauber Rocha, que conheceu Pier Paolo através do amigo comum Arnaldo Carrilho, admirava e criticava o colega com intensidades do mesmo calibre – ambiguidade que de certa forma lhe era habitual. Pasolini, afirmou Glauber à revista Cahiers du Cinema quando da morte do italiano, “procurava no Terceiro Mundo um álibi para a sua perversão”. Entre outras, talvez tenha escapado ao diretor baiano que o último filme de Pasolini, o virulento e controverso “Saló ou os 120 dias de Sodoma”, de 1975 – adaptação do famoso livro do Marques de Sade (“120 dias de Sodoma”) para a patética República de Salò, derradeiro refúgio de Mussolini na segunda guerra – traduzia muito mais um sentimento agônico do que uma perversão. Era mais uma “representação da mutação” subjacente na sociedade.
Pier Paolo Pasolini foi assassinado numa noite de sábado para domingo – na véspera preparava subtítulos e acompanhava a dublagem de “Saló ou os 120 dias de Sodoma” para o francês. Moravia, que o via com frequência e esteve com ele dois dias antes, conta dos seus inúmeros projetos, da sua vitalidade – mesmo curta, uma vida plena de êxtases e agonias, como poucos experimentaram.