Saiba o que acontece na Mostra de Cinema de Gostoso 2023
Balanço parcial pelos cantos do festival potiguar que “faz gostoso” e se firma como uma importante evento para São Miguel do Gostoso
Por Fabricio Duque
Uma das maestrias de todo e qualquer festival de cinema é sua conexão, a de integrar pessoas não só aos filmes, mas principalmente ao meio em que as obras audiovisuais são exibidas. É um desafio em que seus curadorias precisam usar o redor como impacto de chamamento ao público local. Já é sabido também que nosso cinema brasileiro precisa comer ainda muito feijão com arroz para desbravar caminhos e estourar bolhas de um sistema cinematográfico que, por costume estrutural, foca em eixos geográficos mais próximos a uma certa “contemporaneidade”. É, ninguém nunca disse que não seria difícil todo esses trâmites de se fazer filmes e de distribuir essas mesmas obras. Contudo, nós brasileiros tendemos a encontrar soluções para tudo. E é essa a melhor qualidade de nosso povo. A Mostra de Cinema de Gostoso (site aqui), que acontece em São Miguel do Gostoso, a “esquina do Brasil”, lugar em que o “vento faz curva” e que é o “mais próximo do continente europeu”, é orquestrada pelos diretores Eugênio Puppo e Matheus Sundfeld. A dupla da Heco Produções não quer somente estimular o impulso migratório dos filmes potiguares, e sim o processo inverso, trazendo ao município de Natal um festival de cinema de qualidade, com obras diversas, plurais, premiadas e acima de tudo amplificar os temas sociais.
Outra ponto importante é que um festival também não acontece nas projeções, palavra esta que serve de metáfora entre a organização do projetar e a exibição propriamente dita. Há nesse hiato um mundo de preparação. É igual a uma festa. Só saberemos se a comida acabar durante a ação do acontecimento. Só assim saberemos se terá público. Simples assim. A Mostra de Cinema de Gostoso 2023 é pensada um ano inteiro para existir fisicamente em 5 dias, de 24 a 28 de novembro. E é também só nesse período que nós, público e/ou imprensa, podemos mensurar os resultados. E isso a mostra “faz gostoso” e estreita espaços entre regiões, visto que “todo canto é um mundo para o cinema”, disse Matheus. E nesta décima edição, a programação do evento está intensa e frenética, unindo discursos, encontros e uma cachoeira de perspectivas pensadas, ouvidas, articuladas, desejadas e possíveis, as do já e as que ainda têm que esperar. Mas é quando assistimos Eugênio dançando ao som de “Maracatu Atômico”, antes de uma sessão, que finalmente entendemos realmente a essência da atmosfera impregnada de organicidade e liberdade.
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A Mostra de Cinema de Gostoso 2023 é uma experiência multimídia, especialmente para mim que sou “virgem” de Gostoso. O ditado popular diz que a primeira a gente nunca esquece e logicamente que eu levarei tudo isso comigo para sempre, todas essas turbulentas emoções que estou sentindo desde o início. Minha viagem para cá foi uma aventura. Voo alterado e email trocado atrasaram em um dia minha chegada. Sim, isso é completamente aceitável e faz parte da jornada. Mas é quando se coloca o pé em São Miguel do Gostoso é que tudo realmente ganha sentido. Olhamos para um particular céu azul; aumentamos nossa temperatura com o clima mais quente; ouvimos o sotaque linguístico; recebemos o vento, ora com tempestades de areia, ora com uma chuva-garoa; comemos o peixe branco Galo do Alto; captamos todo um cotidiano naturalista de vida acontecendo (de moradores locais ávidos para comparecer em massa às sessões dos filmes, exibidos na Praia do Maceió). Só que o batismo vem mesmo quando entramos no mar (mais salgado e com uma bem grande extensão de areia até a água) e as ondas calmas nos abraçam e começam a brincar com a gente. Aí sim recebemos o nosso pertencimento ao lugar. É nesse sentimento, nada “mufino”, que a Mostra de Cinema de Gostoso se desenvolve e segue seu ritmo.
A Mostra de Cinema de Gostoso 2023 completa dez anos e nós podemos definir todo esse trabalho como sendo de mentoria, visto que se aprende com os ruídos para se chegar a um resultado mais satisfeito, tanto que nesta edição, a A Sala ao Ar Livre (a da praia) conta com 600 cadeiras espreguiçadeiras, tela de 12m x 6,5m, projeção com resolução 2K e som 7.1, experiência imersiva como a de uma sala de cinema de alta tecnologia. Sim, mas o número do público foi muito maior. Na sessão de abertura, a prefeitura contabilizou 1000 pessoas (exibindo o documentário “Nós do Audiovisual”) e, no dia seguinte, chegou a 3000, talvez por ser sábado, talvez por ter o novo filme “Maremoto” do movimento Nós do Audiovisual (que movimenta todo o lugar), talvez por ser de graça e/ou talvez porque todos aqui gostem muito de cinema. Durante a exibições do terceiro dia, famílias e/ou amigos sentaram em cangas e com taças de vinho na mão.
Durante um festival, muita coisa acontece e isso tudo comprova que há um mundo a ser explorado além dos filmes em exibições. Na Mostra de Cinema de Gostoso 2023, não existe júri oficial (o chamado especializado). Aqui é o público que vota por meio de cédulas distribuídas. A escolha majoritária pelo Júri Popular é outra questão em fomentar ainda mais a localidade. O Troféu Cascudo em homenagem ao folclorista potiguar Luís da Câmara Cascudo. Em 2013, o filme mais votado foi “Uma História de Amor e Fúria”, de Luiz Bolognesi; 2014, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, de Daniel Ribeiro; em 2015, “A Família Dionti”, de Alan Minas; 2017, “Escolas em Luta”, de Eduardo Consonni, Rodrigo T. Marques, Tiago Tambelli; em 2022, o voto popular foi para “A filha do Palhaço”, de Pedro Diógenes. Essa cronologia é muito importante para documentar os olhares através do tempo de cada espectador micaelense do gostoso, ou “gostosenses”.
Em 2023, a seleção está ainda mais potente, muito provavelmente pela qualidade de nosso cinema brasileiro, que cresce em nível meteoro, que inventa mais e que busca integrar mais o tema ao forma. Dos 947 filmes inscritos, a programação desta décima edição é composta por nove longas-metragens e 17 curtas-metragens de 11 estados brasileiros, entre as mostras Competitiva, Panorama, Coletivo Nós do Audiovisual e Sessão Especial. Até agora o favorito (pelo burburinho do público, da crítica e dos profissionais do audiovisual presentes na Mostra de Cinema de Gostoso 2023) é “As Marias”, de Dannon Lacerda, sobre as trigêmeas que refletem sobre como é crescer em uma pequena cidade conservadora do interior do Mato Grosso do Sul. O curta-metragem concorre a Voto Popular junto com “Cabana”, da paraense Adriana de Faria; “A Edição do Nordeste”, de rio-grandense-do-norte Pedro Fiuza; “Lapso”, da mineira Carolina Cavalcanti; “Moventes”, do outro potiguar Jefferson Cabral; “Navio”, das diretoras Alice Carvalho, Laurinha R. Dantas e Vitória Real, também do Rio Grande do Norte; e “Quinze Quase Dezesseis”, da realizadora Thais Fujinaga, de São Paulo.
Já na seleção dos longas-metragens, o favorito é ”Estranho Caminho”, do cearense Guto Parente, que teve première internacional no Festival de Tribeca, em Nova Iorque. O filme concorre ao lado de “O Dia Que Te Conheci”, do realizador mineiro André Novais Oliveira, exibido no Festival do Rio deste ano; “Quando Eu Me Encontrar”, também do Ceará, das diretoras Amanda Pontes e Michelline Helena; e “Saudade Fez Morada Aqui Dentro”, do cineasta baiano Haroldo Borges.
Na Mostra Panorama, com 4 longas e 7 curtas, a programação exibiu o documentário “Crowrã – A Flor do Buriti”, do brasileiro Renné Nader Messora e do português João Salaviza; exibido no Festival de Cannes deste ano; “Pedágio”, de Carolina Markowicz, exibido nos festivais de Toronto, San Sebastián, Rio e Mostra 2023; “Sem Coração”, de Nara Normande e Tião, filme que expande o universo do curta homônimo realizado pela dupla em 2014. Já o filme “Tudo o Que Você Podia Ser”, de Ricardo Alves Jr., premiado no Festival do Rio deste ano terá exibição nesta terça-feira (28/11).
Um festival de cinema também cria conhecimento, formação não só do público, mas principalmente da crítica, que descobre talentosos coletivos de audiovisual, como é o caso do Nós do Audiovisual, que eu chamo carinhosamente de “movimento”. O grupo formado por jovens de São Miguel do Gostoso e distritos vizinhos, no estado do Rio Grande do Norte foi criado em 2013 pelos alunos dos Cursos de Formação Técnica e Audiovisual, realizados anualmente em São Miguel do Gostoso pela Heco Produções (SP). “Os cursos têm como objetivo proporcionar aos jovens o domínio de toda a cadeia da produção cinematográfica. Os alunos são estimulados a explorar o imaginário cotidiano de São Miguel do Gostoso ao elaborarem seus roteiros, dentro de um processo de enaltecimento da cultura local”, texto do catálogo oficial da Mostra de Cinema d Gostoso. Neste ano, os filmes, o documentário “Nós do Audiovisual”, com direção de Maisa Tavares e Clara Leal, e “Maremoto”, de Cristina Lima e Juliana Bezerra, vieram da terceira turma dos cursos mencionados acima, após oficinas ministradas pelos Professores oficineiros Rodrigo Almeida, Guilherme Xavier e Daniel Rone.
Um dos grandes pilares da Mostra de Cinema de Gostoso 2023 é a sua busca por inovação. Por trazer também a São Miguel do Gostoso debates, palestras, laboratórios, para discutir, difundir, informar e analisar o que acontece no mercado cinematográfico, nacional e internacional. Como foi o caso de alhuém na plateia que lembrou que a “Edição do Nordeste”, de Pedro Fiúza, lembra muito o filme “Olhar Estrangeiro”, da cineasta Lúcia Murat. Esse mercado de ideias, que chamei de “Gostoso Market” contou com três seminários. O primeiro “Roteiro e Direção: Um Diálogo” com a escritora e roteirista, Maria Camargo, e Phillippe Barcinski, diretor de longas, novelas e séries. Os dois conversaram sobre a “pulverização da autoria”, de ter que ser “contrabandista” (utilizando referência do livro “Martin Scorsese: Uma Retrospectiva”, lançado pela Martins Fontes) e sobre a dificuldade que é manter a “integridade por coração” da ideia original dentro de uma indústria que visa o mercado acima de todas as coisas. “É ir tentando por aqui, por ali, às vezes dá para juntar esse desejo todo e fazer uma obra que você consegue entregar”, disse Maria.
No segundo seminário, “Desafios e Oportunidades do Mercado de Distribuição do Cinema Brasileiro”, com Daniel Queiroz, da Embaúba Filmes, e Tânia Pinta, da Vitrine Filmes, a conversa versou sobre dificuldades e “jeitinhos” para se readaptar nas mais diversas janelas de exibição e como será a distribuição desses filmes, entre a Distribuição de Impacto, que são “mobilizações específicas principalmente com ações sociais voltadas para certos públicos, como por exemplo, o filme “Noites Alienígenas”, que ainda não terminou a Distribuição de Impacto”, disse Tânia. Daniel complementou e explicou como foi o processo de lançamento de “Sementes: Mulheres Pretas no Poder”.
No terceiro e último, “Festivais Internacionais: Filmes e Públicos no Brasil e Europa”, com Ilda Santiago, diretora do Festival do Rio e sócia do Grupo Estação, e Susana Rodrigues, diretora do IndieLisboa e consultora e programação para o Festival de Cinema de Roterdã, a conversa seguiu o rumo de mentoria, de análise entre acertos e erros e de novas ideias. “O cinema mudou mesmo o mundo pelo efeito multiplicador e esse cinema cria laços que vão além dos filmes”, disse Ilda. Mas foi Susana que conseguiu mais gargalhadas com as ideias inovativas do IndieLisboa: “Criamos o Indie Date em que um espectador compra um ingresso, preenche um formulário e nossa equipe é responsável por achar o par perfeito” e complementou “Ah, teve também uma taróloga que indicativa filmes dependendo das questões de cada um dos clientes-público”.
E para finalizar esta matéria que já ficou grande demais (espere leitor(a) cenas dos próximos capítulos direto de Gostoso), não menos importante (na verdade, a parte mais essencial), precisamos falar sobre a equipe. A idealização da Mostra de Cinema de Gostoso é de Eugênio Puppo, que tem ao seu lado Matheus Sundfeld, na função de direção geral e curadoria e que contam com a assistência de Igor Ribeiro. Para organizar toda a produção de filmes e convidados, a equipe brilha com a dedicação máxima das meninas Tamara Ganhito e Nathalya Macchia. E eu não posso deixar de falar de toda a arte-logo do festival. Com ilustração de Mariana Zanetti; design gráfico de Marina Oruê; e animação e edição de vídeo de Cedric Fanti, nós somos imersos um sensorial e apaixonado mundo do audiovisual, em que evocamos aquela nossa paixão cinéfila, desenfreada, incondicional e desmedida, que até então achávamos que era coisa do passado. E no meio de todas essas ondas, para sintetizar e ordenar todos esses impulsos, o trabalho irretocável da assessoria de imprensa de Flávia Miranda, da F&M ProCultura. Não, não é fácil organizar tudo isso e ainda ser gostoso e convidativo.